quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

51

Em Roma há muitas igrejas. Entre as quatro fontes, contudo, existe uma incomparável e vamos falar apenas do campanário. Sem o uso de nenhum recurso cromático, nenhum revestimento de valor, meras paredes lisas, superfícies simples, surge uma varanda em quatro faces, delimitada por quatro colunas, mas divididas em pares por uma pilastra oca, encimada por linhas côncavas, que, ademais, não se ligam em vértices perfeitos, mas em recortes também côncavos. A cada mudança de nível, linhas e mais linhas de reboco, criando divisões e ranhuras onde não haveria nada. Não satisfeito, seu criador agregou um bloco trapezoidal, também com linhas curvas, em cima dele, outro e mais linhas, depois ainda uma esfera e, por fim, exausto, um crucifixo. Usando apenas superfícies, talvez pintadas de bege.

A violação de qualque regra clássica, de qualquer moderação baseada no bom senso, não produz qualquer desconforto. Na verdade, o excesso absurdo e delirante é imediatamente aferroado por recursos estritamente limitados. Há nisso uma lição deliciosa: o desvario dentro da lei; a energia contida pela configuração; a matéria impondo seu peso à imaginação mais fantástica.

Na música, o procedimento é o mesmo. Apenas uma voz, o soprano, cantada por um menino ou por uma diva, ninguém sabe ao certo, mas apenas uma. O um desdobra-se, contudo, no dois, o trompete. Sons quase estridentes, parecidos e muito dessemelhantes, para celebrar justamente a Glória inefável de Deus, espelhando a variedade do criado nos céus e na terra com a variedade dos expedientes musicais. O louvor deve ao menos ambicionar a semlhança com o que é louvado; produzir o mesmo espanto, exibir a mesma incontrolável maestria de algo que se soma a outro algo e assim sempre, mas por meio do mínimo. Trompete e voz ou apenas a voz.

Não há como encerrar essa loucura medida, essa exuberância submetida ao mais rigoroso regulamento, senão com um aleluia preciso, sem a necessidade de qualquer massa sonora para produzir seu efeito. Como um míssel teleguiado, como uma mira a laser. Energia e medida.

Jauchzet Gott in allen Landen!
Was der Himmel und die Welt
An Geschöpfen in sich hält,
Müsse dessen Ruhm erhöhen
Und wir wollen unserm Gott
Gleichfalls jetzt ein Opfer bringen,
Daß er uns in Kreuz un Not
Allezeit hat beigestanden.


Louvai a Deus em todas as terras!
O que os Céus e o Mundo
De criado em si guardam,
Deve sua Glória exaltar
E devemos a nosso Deus
Também agora uma Oferenda trazer,
Pois que na Cruz e na Dor
Ao nosso lado sempre esteve.


domingo, 27 de dezembro de 2009

106

Há uma beleza que faz falar; outra, faz calar. A primeira pode ser contemplada de uma distância emocional segura e vai se transformando em ícone, inalcançável porque não queremos, de fato, alcançá-la. A segunda torna-se mais próxima a cada visitação e a familiaridade não a prejudica. Transpõe a barreira que construímos para nos proteger do ruído do mundo, nos invade e estabelece seu território. A indústria cultural agrava a síndrome. Olhamos a estante e sabemos que ali há uma inquietação que já nos tomou. Não podemos mais fingir que não existe, não podemos mais conter sua presença por meio de um rito qualquer. Está perto demais.

As comemorações, os centenários e as muitas páginas não lhe dizem respeito. Sua existência no mundo externo é quase irrelevante. Ela se apossou de nossas memórias mais íntimas, das imagens sobre quais jamais falamos, ela nos faz perguntas que não sabemos responder. É um simbionte que, se fôssemos sábios, deveríamos temer.

Levei muito tempo para entender a persuasão da música sobre o tempo de Deus. Morrer é inevitável, decerto, e cada um, no fundo, aceita o rito funeral. O momento, contudo, sempre poderia ser outro; um ano a mais, um mês a mais. Difícil aceitar que seja aquele momento, tão irrelevante como todos os outros. A música vem, assim, para trazer a paz e a certeza de que o momento é sempre o melhor. Ainda me perturba, porém, a firmeza de Jesus, prometendo ao ladrão o Paraíso para aquele mesmo dia. Perturba-me a música que sustenta a palavra Paraíso.

A obra prima - a possibilidade de comunicação imediata com os homens do passado e os homens do futuro - não está nos museus, nas enciclopédias, na versão desta ou daquela orquestra. Está na mensagem escrita no verso da folha de papel posta sobre mesa e que não sabemos quando vamos virar.

Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit.
In ihm Leben, weben und sind wir,
solange er will,
In ihm sterben wir zur rechten Zeit,
wenn er will.

O tempo de Deus é o melhor dos tempos.
nele vivemos, nos movemos e existimos
tanto quanto Lhe apraz.
Nele morremos na hora determinada,
segundo Sua Vontade.


quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

71

Nada como um dia depois de outro. Em qualquer série - de números, de eventos, de memórias - acrescentar um novo termo pode demonstrar inexoravelmente uma lei, mas pode mudar completamente o sentido do que foi acumulado até o momento. A distância entre os termos pode apontar para o infinito divergente e pode permitir o cálculo total de sua soma. Uma memória a mais pode apagar outras tantas ou modificar as demais. A vida humana sempre termina em um ponto, mas quantos são os pontos faz toda a diferença.

As convenções da música sempre buscaram ordenar o acúmulo de suas séries - movimentos rápidos, movimentos lentos, movimentos rápidos, aberturas, rapsódias. Trata-se de impor uma narrativa sobre o mero acontecimento. É óbvio, contudo, que existe um curso inverso: o acúmulo do díspar. Deixar que alguma ordem seja produzida pela agregação de experiências lúdicas, unidas apenas por uma motivação extramusical, um sistema qualquer de referência, como alguém que amarra juntos muitos balões coloridos.

E assim foi feito. Há um solene coro que traz música a um salmo do sábio rei, depois uma invocação, mais à frente diz que o Dia e a Noite são do Senhor. Bom, segue-se uma fanfarra que não tem nada a ver, como se diz hoje. Nesse momento, uma oração comparando as almas e as pombas. E tudo termina com uma experimentação vocal para desejar tudo de bom ao Imperador José. Quem esteve na festa não entendeu nada.

O pior de tudo, pior mesmo, é que essa espantosa confusão de sons, trompetes, granizos, tímpanos, pombas, flautas, noites, dias, gente com oitenta anos, programação de enterros, música para vereadores, absolutismo para principiantes, termina no ar, subitamente, onde os sopros param, sem dizer mais nada. Progressão finita, série encerrada. Ponto.

Gott ist mein König von altersher, der alle Hilfe tut, so auf Erden geschicht.

“Todavia Deus é o meu rei desde a antiguidade, operando a salvação no meio da terra”. (Salmos 74:12)



terça-feira, 22 de dezembro de 2009

164

Depois do primeiro salário, você não ouve mais seu pai. Não ouvirá seu chefe senão por conveniência tática; talvez ouça um padre, pastor ou rabino, mais como cortesia. Se você é leitor do Nicolau, sabe também que todos os homens são feitos da mesma matéria e que é melhor ser temido caso não seja amado. Ninguém espera uma injunção ética de um terapeuta ou mesmo de um médico - apenas o apelo ao próprio interesse e à auto preservação. Depois dos vinte anos ninguém mais ouve um sermão, nem quer ouvir.

Existem hoje anúncios na televisão sugerindo o belo gesto e a solidariedade. Campanhas eleitorais descobriram que emoções podem eleger candidatos e a expressão faça a coisa certa tornou-se corrente, mas a verdade é que é pouco, muito pouco. Os dramas humanos são terríveis demais para que a idéia de fazer a sua parte funcione. Sem flama e sem terror como sentir a tragédia da fome ou do desalento? Ontem, um homem jogou sua mulher do nono andar na cidade do Rio de Janeiro e em seguida pulou para a morte. Ninguém testemunhou ou amparou a miséria que levou ao sangue na calçada de duas vidas perdidas.

Certamente é triste, mas apenas à arte se permite ainda a liberdade da condenação moral e do sermão. O tenor não canta, ele vitupera, interroga, acusa os corações que se tornaram duros como pedra. Acusa os que se dizem cristãos, lamenta a falta de amor pelo próximo. Paira a ameaça da condenação divina, da negação do coração de Deus.

Sim, é apenas música. Ninguém dará mais do seu por causa de acordes violentos ou porque Kurt cantou com bravura e emoção. O sermão que inguém ouvirá, contudo, está lá: quem quiser ouvir, que ouça.


Ihr, die ihr euch von Christo nennet,
Wo bleibet die Barmherzigkeit,
Daran man Christi Glieder kennet?
Sie ist von euch, ach, allzu weit.
Die Herzen sollten liebreich sein,
So sind sie härter als ein Stein.


sábado, 19 de dezembro de 2009

88

Trilha sonora não é uma invenção recente. O cinema, na verdade, levou-a de emprestado das mais várias atividades sociais, do cabaré aos campos de caça. Examinando a questão sem preconceitos, pode-se mesmo concluir que a ópera é uma forma de trilha sonora, assim como a música que acompanhava os versos trágicos na Antiguidade. Na verdade, a música desligada de uma referência existencial específica, a música para ser ouvida em um concerto ou recital, é que se mostra uma invenção curiosa, talvez datada.

A contribuição do cinema, ao menos por um tempo, foi ampliar o número de eventos indexáveis pelo registro sonoro. Uma ópera de terror soa improvável; a vida social tem limites inexoráveis; mas as artes cinematográficas pedem música para grandes incêndios, espetaculares batalhas terrestres e navais ou para a interação com criaturas do outro mundo. Nenhum compositor dedicaria uma peça ao romance de Robert Louis Stevenson, mas um cineasta pode aspirar à imortalidade caso produza a coincidência perfeita dos sons com as angústias pessoais do Dr. Jekill. Pode realizar a consumação de música e narrativa que estava fora do alcance de toda a literatura gótica do século XIX.

Nem sempre é reconhecido que a Sagrada Escritura detém o mesmo potencial. Desobrigada da descrição de eventos contemporâneos ou da modesta economia emocional da vida burguesa, o Velho Testamento oferece imagens ambiciosas e amplamente conhecidas. Para muitos e por  muito tempo, absolutamente históricas em seu desenvolvimento. Drama histórico, grandes eventos, a presença imediata de Deus na Terra, tudo podia ser tratado musicalmente, dentro de certos limites.

Mesmo uma poética passagem, saída da pena do profeta Jeremias, pode ganhar um vigor insuspeitado, traduzido como uma musical expedição de caça de um nobre europeu. Ou seja, uma trilha sonora, no sentido rigoroso da palavra. Mesmo que tudo termine com um prosaico coral, que ordena cantar, orar e seguir no caminho do Senhor.


Siehe, ich will viel Fischer aussenden, spricht der Herr, die sollen
sie fischen. Und darnach will ich viel Jäger aussenden, die sollen sie
fahen auf allen Bergen und allen Hügeln und in allen Steinritzen.

“Eis que mandarei muitos pescadores, diz o Senhor, os quais pescarão; e depois enviarei muitos caçadores, os quais caçarão sobre todo o monte, e sobre todo o outeiro, e até nas fendas das rochas” (Jeremias 16, 16).


sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

76

Trata-se de um caso de metonímia. Havia comprado um volume da versão completa do Harnouncourt, aquela da capa marrom, e fui ajeitando o CD no player portátil pela rua até chegar ao ponto de ônibus em frente ao Union Bulding. Nem ia pegar o ônibus, apenas sentar um pouco, era um sábado e o céu de Ann Arbor me parecia uma maravilha feita de azul. Naquele verão, pensei que jamais veria algo tão nitidamente azul e nem sabia que estava certo. Ali sentado ouvi pela primeira vez a frase do trompete informando que o céu celebra a glória de Deus. Intoxicante, como a descreveu Schweitzer, ela sobrepunha a glória de Deus ao céu espantosamente azul do estado de Michigan em julho.

Muitos encontros decorrem, por vezes, de um só. A visão dos céus azuis, sem uma nuvem sequer, a partir daquele dia, sempre me lembra da frase do trompete e esta, quando ouvida, por sua vez, dos céus azuis. Céus azuis e trompetes me levaram de novo ao livro dos Salmos e ao convívio com as palavras da Germânia. Decifrados os termos bárbaros, foi necessário entender porque o tenor pedia o ódio de uma raça inimiga e porque se invocava o povo à ouvir a voz de Deus. Muita coisa era explicada pelo verso dizendo ao cristão que vivesse em seus atos.

Não era moda, naqueles dias, falar em portais para outras dimensões ou em mundos virtuais, mas é certo que sentado em frente ao ponto de ônibus, sob o sol forte de Ann Arbor, entrei em um país desconhecido, composto de literaturas quase mortas, uma língua abstrusa, uma mitologia que jamais me encantara. Fui apresentado ao que era radicalmente diferente, transfigurado pela música.

Ainda hoje, ainda ontem, para dizer a verdade, não me canso de espantar com o fato de que os versos dizendo que não há língua ou narração onde não se ouça a voz de Deus são distribuídos pelas quatro vozes do coro. De fato, cada uma das vozes diz que não há voz onde não se ouve a voz de Deus. E perceber o truque não lhe retira uma fração sequer do espanto.


Die Himmel erzählen die Ehre Gottes,
und die Feste verkündiget seiner Hände Werk.
Es ist keine Sprache noch Rede,
da man nicht ihre Stimme höre.





quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

56

No fim, quase sempre, o coral. As palavras podem percorrer os mais ínvios caminhos, as formas mais apaixonadas e desconhecidas podem ser experimentadas, mas a referência final é ao poema que todos conhecem e que todos podem ao menos cantarolar. Uma referência venerável aos hinos do passado heróico quando apóstolos falavam novamente aos homens. A memória comum, a familiaridade, a simplicidade: esse é o ponto final da mensagem feita de música.

Também assim é a vida. Pouco importa sua variedade, seus muitos caminhos, as idas e vindas; ela é como uma viagem. Calma ou turbulenta, intensa ou tranquila, segue para o mesmo e inevitável porto. Homens e mulheres tão diferentes, ricos, pobres, brilhantes, ordinários, vidas tão distintas, todas elas gradativamente seguem o mesmo caminho. Devolvendo tudo o que acumularam e o que conheceram, sem chegar a ouvir a música tocada em sua honra - se houver.

Nesse caminho, o cruzeiro é, ao mesmo tempo, orientação e símbolo. Ele ajuda a traçar sua rota em mares tempestuosos, em que os ventos forçam as velas, em que as mesmo algumas estrelas podem enganar. Símbolo de um destino, símbolo de uma submissão ao destino, que precisamos aceitar de bom grado, pois não há outro. Seja lá o que tenha nos feito, preparou esse destino.

Quem sabe manejar um barco, mesmo um pequeno barco, compreende a justiça do coral. Quando cai a tarde, voltamos ao porto, descemos as velas para atracar. No momento decisivo, jogamos o cabo sobre o acoradouro e soltamos o leme. Não estamos mais no comando, mas podemos saltar à terra firme.


Ich will den Kreuzstab gerne tragen,
Er kömmt von Gottes lieber Hand,
Der führet mich nach meinen Plagen
Zu Gott, in das gelobte Land.
Da leg ich den Kummer auf einmal ins Grab,
Da wischt mir die Tränen mein Heiland selbst ab.





terça-feira, 15 de dezembro de 2009

123

Minne é uma estranha palavra alemã. Quando a poesia dedicada às mulheres tornou-se um gênero literário respeitável nos tempos medievais, ela designava uma forma elevada do amor. Sob a inevitável pressão dos fatos da seleção sexual, contudo, passou a denotar formas de atração consideradas menos nobres. Qualquer que seja o conteúdo real desse último adjetivo. De forma surpreendente, a piedade protestante manteve viva a expressão Jesusminne para expressar um amor terno e pessoal a Jesus Cristo, pelo menino e pelo crucificado.

Como sentimento humano, Jesusminne sempre foi suspeito para as religiões organizadas. Sua intenção mística, a idéia de uma comunicação emocional imediata, o uso de imagens poéticas do amor cortês e a associação com o pietismo terminaram relegando-o a um capítulo obscuro da história das religiões. Como revela a evolução semântica da própria palavra minne, o Amor, mesmo o mais puro, termina decaindo. Sem o apoio das palavras, contudo, o amor terno a Jesus pode ser ainda contemplado na música. Somente ela mantém vivo o sentido preciso dos versos.

E assim ocorre com o coração que queima de amor e diz que nada na terra seria mais querido que o amado Emanuel, Pastor dos Crentes. Dolente, angustiada, ela nada mais quer senão guardar a Jesus. Apesar de toda a paixão confessa, perservera em sua nobreza: esta música foi feita para cantar o amor, mas dificilmente serviria para iluminar versos românticos tradicionais. Suave demais, piedosa demais.

As emoções humanas têm uma história. Há versos que exaltam a força do leão ao quebrar a espinha de uma ovelha tenra ou a lança afiada que penetra o crânio de um herói, que tomba. A eles concedemos a permissão da licença artística, podemos recitá-los sem temer por nossos escrúpulos modernos. Quando começam, porém, os acordes em honra do querido Emanuel, não estamos mais tão seguros de nossa proteção contra um espectro do passado.


Liebster Immanuel, Herzog der Frommen,
Du, meiner Seele Heil, komm, komm nur bald!
Du hast mir, höchster Schatz, mein Herz genommen,
So ganz vor Liebe brennt und nach dir wallt.
Nichts kann auf Erden
Mir liebers werden,
Als wenn ich meinen Jesum stets behalt.



segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

175

Albert Schweitzer jamais repetiu as palavras da Eucaristia sem entoar a venerável melodia. Assim ele mesmo escreveu - confissão que não deixa de ser polêmica para um pastor. Há palavras e frases cercadas de tal gravidade que não seriam passíveis de uma tradução musical. Arte é artifício e sensualidade e há sempre o risco do melodramático e da impropriedade. Essa foi, por sinal, a razão que levou ao declínio histórico do uso litúrgico da música.

Trata-se, porém, de um preconceito moderno, derivado de um certo tipo de interpretação intelectual da Escritura. Em outros tempos, a idéia de que a palavra de Deus admitia infinitas leituras - históricas, simbólicas, esotéricas, etc - permitia assimilar sem dificuldade uma tradução musical de sua mensagem. Um tempo em que a música era considerada uma ciência do sagrado ou, pelo menos, das coisas ocultas. Uma melodia ou uma obra musical poderia revelar o sentido secreto do texto sagrado.

Como Jesus Cristo chama suas ovelhas? Com que ênfase? Com que doçura? Um versículo é apenas um versículo se a voz humana não lhe traz a vida. Um versículo pode descrever apenas uma ação trivial, que a voz humana reproduz como se fosse coisa ordinária. A música, por outro lado, pode dar vida ao que era apenas letra e apenas voz. Nesse caso, ficamos sabendo que importante mesmo era chamar as ovelhas por seu nome. Não um chamado geral, para todas as ovelhas. O recitativo, portanto, está chamando o fiel pelo nome e o conduz para fora.

Nem é preciso uma ária ou um coro. O verso é simples, a mensagem é singela e um recitativo pode completar toda a mágica, ensinando algo também sobre a voz e o tom do evangelista João. Quem tiver ouvidos, que ouça. Este, por sinal, é o tema da ária para baixo.


Er rufet seinen Schafen mit Namen und führet sie hinaus.

“ele chama pelo nome as suas ovelhas, e as conduz para fora” (João 10, 3)



domingo, 13 de dezembro de 2009

163

Existe uma fórmula matemática relacionando todos os seus símbolos fundamentais. Nela estão organizados em uma igualdade a base dos logaritmos naturais e, o número π, o imaginário i, assim como os algarismos 1 e 0. Existe um verso Evangelho que enfeixa todos as questões do cristianismo. Nele, Jesus responde a uma interrogação dos fariseus afirmando que se deve a César o que é de César. As condições para a obediência aos dois mundos do Homem foram fixadas com uma concisão notável. Sobre o versículo paira um ideal de Justiça, superior à letra de qualquer lei, persuasivo por sua própria precisão.

Como seria possível transformar em música uma idéia tão abstrata? Não estamos diante de um afeto humano, um sentimento classificável, uma reação emotiva do espírito cujo movimento interno pudesse ser descrito com o uso de recursos retóricos convencionais. A alma não está descendo, junto com alguma escala musical, a uma profundeza dramática; os anjos não estão fazendo soar um siciliano ao lado do berço de Jesus, o bom Pastor. O versículo do Evangelho não fala da reparação de uma injustiça ou da sabedoria de um juiz. Fixa um princípio, uma relação de equivalência.

O segredo da criação musical, portanto, está em não fugir dessa concisão retórica. Refletir uma distribuição abstrata, fixar posições no espaço das idéias e reconhecer a natureza cíclica da resposta de Jesus aos fariseus. Aqui, isso; lá, aquilo: como um veredicto de Salomão. O verso tem seis sílabas; o núcleo da melodia tem seis notas; começa em um Fá# para retornar à mesma nota. A cada um, apenas o que é seu. O mais lógico ideal de Justiça, controverso no mundo real, límpido na voz do violoncelo.

A secura intelectual dessas alturas musicais poderia ter deixado satisfeito um criador menos ambicioso. Não foi o caso, pois logo à frente, no dueto para alto e soprano, a mesma idéia de movimento, de distribuição de quantidades justas, de repartição correta, ganha uma versão mais apaixonada onde o fiel pede Toma-me de mim e dá-me a ti!. O que representa, obviamente, um excesso barroco que não se deixa conter pelo rigor das matemáticas ou do versículo do Evangelho.


Nur jedem das Seine!
Muss Obrigkeit haben
Zoll, Steuern und Gaben,
Man weigre sich nicht
Der schuldigen Pflicht!
Doch bleibet das Herze dem Höchsten alleine.




sábado, 12 de dezembro de 2009

168

O passado é constantemente questionado a demonstrar sua atualidade. Sem cumprir essa rigorosa tarefa, obras de arte, livros, reflexões filosóficas, lideranças políticas ou religiosas correm o risco do mais analítico desprezo. Parecem salvas apenas quando antecipam o tempo presente e jamais tiveram tal ambição.  Um observador imparcial notaria que a mera existência do passado deveria recomendar, no mínimo, um crença comedida nas mitologias do presente. Afinal, pouco resta do passado que possa sobreviver ao critério da atualidade e o mesmo ocorrerá com o tempo presente. Seria esperar muito. A atualidade, achando-se o início do Grande Futuro, ambiciona julgar impiedosamente o passado.

Vez por outra esse otimismo adolescente sofre suas rachaduras. A sombra de epidemias mortais do passado lembra os limites da ciência médica moderna; o terrorismo religioso confirma a tênue pátina do iluminismo. Foi divertido também ler, publicado no insuspeito e contemporâneo Guardian, um antigo poema alemão que recomendava ao fiel fazer as suas contas. Um verso terrível que fendia as rochas, gelava o sangue e bem serviria de epígrafe para a crise financeira cujos efeitos ainda hoje não se esgotaram sobre a economia britânica. Apesar das virtudes inegáveis do desenvolvimento sustentável, talvez fosse melhor recomendar a Deus os bens, o corpo e a vida.

Esse encontro promovido pelo autor do artigo soava ainda mais agridoce por conta da ária para tenor, cujos versos parecem ter sido escritos especialmente para ofender a sensibilidade moderna no que se refere ao formato de uma obra musical, mesmo com conteúdo religioso. Não se imagina uma canção moderna falando em capital e juros ou ainda que Deus faz nossa péssima contabilidade gravando-a em aço e diamante. Nos dias de hoje, a ruína financeira pode nos atingir, podemos ser vítima da cobiça e da avareza, mas devemos falar de amor.

O certo é que depois de tanta tensão e ameaça, música mais que maravilhosa exalta precisamente o que seria a real solução: Senhor, quebra as cadeias de Mamon! Mãos, espalhai o Bem! Afinal, o mundo, hoje ou amanhã, vai acabar, a finitude é nossa lei. Não me lembro se o artigo do Guardian chegou a esse ponto.

Tue Rechnung! Donnerwort,
Das die Felsen selbst zerspaltet,
Wort, wovon mein Blut erkaltet!
Tue Rechnung! Seele, fort!
Ach, du musst Gott wiedergeben
Seine Güter, Leib und Leben.
Tue Rechnung! Donnerwort!



sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

147

O mérito desse registro é do maestro John Eliot Gardiner. Não adianta pesquisar em diários de época, em cartas pessoais, nas notícias de jornais locais ou nacionais, em cadernos de recordações ou em documentos oficiais. Semana após semana, a programação musical dos cultos da igreja de São Tomás trazia maravilhas seguidas de maravilhas sem que tenha restado um só testemunho contemporâneo. Sabemos hoje que essas apresentações não recebiam, ao seu final, os protocolares aplausos que hoje enchem as salas de concertos. Não sabemos também quão tediosos eram os sermões pronunciados antes e depois da música litúrgica. De todo modo, não há um mísero comentário contemporâneo: hoje, a música foi extraordinária em São Tomás. Ela foi recebida em silêncio pelos fiéis e o silêncio se prolongou na memória escrita. Gardiner, comentando esse fato espantoso, lembra o texto do Evangelho sobre porcos e pérolas.

Compreender uma obra prima, contudo, pode não ser tão óbvio. Os tempos modernos, com sua obsessão publicitária com o gênio artístico e com o sucesso financeiro, têm uma visão simplória da grande arte: existe apenas o best seller, o disco de platina, o prêmio Nobel e outras etiquetas similares. Entretanto, o coral Jesus bleibet meine Freude, o pop, o casamenteiro, o toque de telefone celular Jesus Alegria dos Homens foi ouvido a primeira vez sem deixar um registro sequer. Ganhou sua popularidade atual apenas com a versão para piano de Myra Hess, publicada originalmente em 1926. No momento em que o rádio emergia como meio de comunicação a versão para piano pode ter aberto o caminho para uma estranha popularidade.

Essa popularidade, na verdade, ainda hoje obscurece a composição original, onde se pode encontrar canções maravilhosas em engenho, fé e sensibilidade, poesias de alto nível literário, um encantador episódio do Evangelho e pelo menos outra excepcional obra prima, o coro Coração e Boca, Atos e Vida. Este último, por sinal, mais antigo, composto em Weimar. As duas versões mostram, por sinal, que o compositor gostava mais do coro inicial.

Essa, na verdade, pode ser a marca da obra prima. O autor apenas suspeita do valor de sua criação, os primeiros ouvintes nem a recordam direito, os séculos passam, seu conteúdo complexo é visto de outra maneira, seu estudo constante revela mais e mais ângulos. Surge um culto privado da obra prima. No fundo, ela continua tal como no seu primeiro dia; é tão grande que não podemos vê-la inteira. Sentimos sua presença e compreendemos em parte.


Herz und Mund und Tat und Leben
Muss von Christo Zeugnis geben
Ohne Furcht und Heuchelei,
Dass er Gott und Heiland sei




 
Myra Hess (1895-1965)

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

72

O sentido desliza sobre a superfície das palavras. É difícil saber o que realmente estamos dizendo e essa incerteza provoca a reações variadas. Se não podemos falar, dizem uns, devemos calar. Outros afirmam que qualquer frase, em última análise, remete a todas as outras. Quando falamos, estamos falando de todas as coisas do mundo. Saul assegurou, contudo, que podemos falar com confiança das coisas que existiriam em todos os mundos possíveis. É pouco e ele mesmo sabe disso. Melhor deslizar, então, e ver o que acontece.

Revelar, em música, o sentido de uma palavra ou um verso é sempre mais arriscado que dizê-lo. Tudo segundo a vontade de Deus soa como um preito de resignação; nem sempre está claro seu conteúdo de ameaça a que o ritmo, o mero ritmo, soma a inexorável passagem do tempo, a aproximação da Morte e do Juízo. Livre de sílabas, a música afasta as cortinas, abre portas e janelas, cria cenários terríveis. Os versos, agora, são apenas uma figura no horizonte, enquanto a música prossegue como uma tormenta.

Tudo o que tenho ou sou parece, à primeira vista, uma simetria ou uma aliteração. Basta uma linha de melodia para transformá-la em abandono, em perda, em renúncia. A tal ponto, que a melodia vai vivendo com suas próprias forças, deixa de lado as palavras e os versos, deliciada com a persuasão íntima da perda. O que Jesus quer para mim? Basta ouvir.

O paradoxo do sentido é desfazer a rede de significados em torno das palavras. Elas têm apenas uso, provocam efeitos, fazem percursos. O sentido é apenas um peregrino, um viajante malicioso que conta muitas versões de uma história que talvez não tenha existido. A música, na verdade, vai mais além.


Alles nur nach Gottes Willen,
So bei Lust als Traurigkeit,
So bei gut als böser Zeit.
Gottes Wille soll mich stillen
Bei Gewölk und Sonneschein.
Alles nur nach Gottes Willen
Dies soll meine Losung sein




quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

19

Angeologia é uma disciplina polêmica. Como saber o que pensam os anjos? O que querem os anjos? Na Escritura, trazem quase sempre a mensagem perturbadora de Deus. Uma cidade será consumida pelo fogo do Céu, uma mulher será transformada em estátua de sal, uma virgem conceberá. São muito estranhos os anjos: sem memória, sem vontade, cantam louvores a Deus. Ao que tudo indica, são também soldados violentos: guardam os portões do Paraíso com uma espada de fogo, travaram a grande batalha dos Céus e virão comandar o fim dos tempos. São uma hoste, um exército e há muitas razões para temê-los.

Miguel golpeou o velho Dragão, mas essa luta não é nossa, nunca estivemos em combate. Ela prossegue em torno de nós e apenas ouvimos o clangor das armas, os cavalos e os carros de combate. A guerra está longe e nada podemos fazer, senão pedir proteção. Por isso o coral nunca termina com a derrota de Satã, seu bramir ainda nos ocupa e nos faz tremer. A luta continua. Está tudo explicado.

De várias maneiras, podemos apenas pedir. Pedir que o universo nos seja benévolo, pedir que nossa vida transcorra segura, pedir saúde e prosperidade, pedir que os anjos nos acompanhem dos dois lados da estrada para que nosso pé não tropece, pedir que nos ensinem seu real ofício: cantar o sanctus, dar graças por mais um dia vivido em sossego.

Não há qualquer enigma quanto a isso. A batalha dos anjos prossegue, acima, não é assunto nosso. Podemos esperar apenas o suave caminho de Lázaro, não o que retornou da morte, mas o que foi abrigado no seio da paz.


Es erhub sich ein Streit.
Die rasende Schlange,
der höllische Drache
Stürmt wider den Himmel
mit wütender Rache.
Aber Michael bezwingt,
Und die Schar, die ihn umringt
Stürzt des Satans Grausamkeit.




segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

29

Assim começa a canção: "Pensa em nós com teu amor". Prossegue pedindo as bençãos do Senhor para as autoridades municipais e celebrando a virtude da obediência. Música política, se tal coisa existe, música meramente administrativa. Terminada a cerimônia, seguiram todos para a casa, como nas paradas do dia 7 de setembro, pouco se importando com o pagamento de impostos ou com a obediência ao código de posturas municipais. Solenidades decaem; em poucos anos ninguém lembra das razões das datas e dos nomes das ruas. Tantas vezes passei pela rua 24 de maio indo para o Méier; hoje preciso me esforçar para lembrar da efeméride.

No entando, lá estava a música. Doce, amorosa, trazendo seu pedido ao Deus de Israel de forma tão terna que, sem blasfêmia, seria possível acreditar que Ele o ouvisse. Como um raciocínio feito de flores, ela pede bençãos para os que obedecem. É impossível não lembrar as palavras de Jesus: bem aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Por vários minutos, o que era convenção, lugar comum, palavras que podem ser vendidas e compradas, ganharam outra vida, uma vida medida em séculos.

Vamos ser honestos: eu não estava lá, naquele dia, naquela cidade. Os que ouviram são pó, menos que pó. Não há comunicação possível, apenas o som desse aparelho eletrônico, nesse momento. Essa emoção não atravessou o desfiladeiro do tempo; ela está nascendo aqui, agora, mas, afinal, de onde ela vem? Não estava em mim, que pouca atenção dedico a eventos cívicos; não estava nos versos; nunca esteve na voz alada da Fama.

Eu não tenho respostas, sobretudo porque vou ouvindo também os aleluias que acompanham essa canção, o coral, a sinfonia e as as graças ofertadas a Deus. Foi escrito certa vez que a música não representa essa ou aquela emoção particular, mas as emoções humanas em si mesmas, em sua natureza essencial e abstrata. E apesar disso, nós a entendemos perfeitamente. Nossa imaginação subitamente desperta e busca dar formas a esse mundo espiritual, vesti-lo com carne e osso. Talvez seja esse o segredo da canção das bençãos para os que obedecem.


Wir danken dir, Gott, wir danken dir
und verkündigen deine Wunder.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

26

Na verdade, é só uma forma de calcular. Chove agora, a água está correndo para o lago Paranoá e o mesmo vale para estes minutos insones. Vazios minutos prejudicados pela agitação com vôos e aeroportos, vão se somar a todos os outros passados e fazer companhia a outros tantos, debitados da vida. Nem adianta sentir angústia: como é passageira, como é fugidia a vida do Homem.

O sucesso módico, o êxito pessoal não a salvam; trazem uma anestesia, põem uma missão aos seus pés. Os minutos vazios continuam se acumulando e somados, serão mais numerosos que as festas, as bebedeiras, as orgias. Quando a exaltação termina, eles seguem passando, cada vez em maior número, cercando os belos dias, os gloriosos dias com uma diáfana névoa de irrelevância. No início, você não percebe, mas a idade e o tempo esclarecem as coisas, ensinam a fazer o cálculo correto. Quantas vezes vou ainda correr em volta da Lagoa? Mais de cem? De quantas realmente me lembro? Talvez duas tardes. E assim o que chamava de Rio de Janeiro em mim vai morrendo.

Seria melhor dizer vai passando, se desfazendo, desbotando e fica bem menos triste desse jeito. E como uma roupa puída e rasgada, essas memórias vão ficando pitorescas. Você termina achando engraçado porque as coisas ruins também se vão, também são de somenos. Como um brinquedo antigo, guarda-se um certo afeto pastoral. Sei disso porque rio em segredo das coisas que me pareciam importantes; todas vão perecer de forma ridícula. São apenas gotas que caem, esses minutos.

Com o passar do tempo, você vai sendo libertado das mitologias de sua época, de sua geração, das manchetes dos jornais; não sente mais vontade de brigar com idéias e coisas que lhe pareciam ridículas ou nocivas. Você prefere ouvir música em casa. Sei que devo dar graças, sei que há nisso uma lição.


Ach wie flüchtig, ach wie nichtig
Ist der Menschen Leben!
Wie ein Nebel bald entstehet
Und auch wieder bald vergehet,
So ist unser Leben, sehet!