sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

10

A crença em Deus é também a promessa da Revolução. Está dito que os poderosos serão jogados nos abismos de enxofre e os pobres desta Terra serão como as estrelas do céu. Ele há de tirar dos ricos para dar aos famintos. Que não haja engano sobre isso: muitos santos tremeram pelo destino que aguarda os opulentos. Deus escolheu nascer entre os oprimidos, do corpo de uma mulher.

Sem dúvida há razão para o júbilo, pois uma moça agora carrega uma criança e a promessa a Abraão foi cumprida. Os que estavam tristes podem ser alegrar com o futuro. Essa música, contudo, não traz o tumulto da revolta ou da vingança. A voz da moça escolhida canta uma alegre e luminosa canção galante. Os poderosos são jogados no inferno ao som de uma dança para salão.

O artista, também um dos crentes, consuma a suprema ironia. As leves melodias que exaltam a felicidade terrena e os brilhantes salões de divertimento estão na voz de Maria, a moça judia, e prometem a saciedade aos famintos. A música que soa para a alegria dos felizes nesse mundo agora ilumina a promessa de Deus aos felizes no outro mundo.

A música séria, a música da Paixão, é ouvida brevemente, apenas no momento preciso: no recitativo com as palavras de Deus a Abraão no deserto, cheias de graça e verdade.


Meine Seel erhebt den Herren,
Und mein Geist freuet sich Gottes, meines Heilandes;
Denn er hat seine elende Magd angesehen.
Siehe, von nun an werden mich selig preisen alle Kindeskind.


“Minh’alma engrandece ao Senhor,
E meu Espírito se Alegra em Deus, meu Salvador;
Porque atentou na baixeza de sua Serva;
Pois eis que desde agora me chamarão bem-aventurada”
(Lucas 1, 46-48, versão de João Ferreira de Almeida).



segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

96

Não sabemos qual era a cor dos olhos de Elizabete. Sua vida de menina, criada em um monastério, sempre será um segredo, mas, ao fazer 22 anos, abandonou o hábito e a fé de seus pais e de sua gente. Converteu-se ao luteranismo e fugiu para Wittenberg, onde viveu na casa de seu mentor até casar-se com Gaspar, quatro anos mais novo. Teve uma filha e um filho; faleceu aos 35 anos de idade. Gaspar casou-se novamente.

Por mais que se procure, nada mais se achará, senão que Elizabete escrevia poemas. Naqueles tempos difíceis, em meio a violentas polêmicas teológicas e guerras religiosas, compôs versos que mereceram atenção e foram recolhidos por coleções de hinos, chegando aos dias de hoje. No século XXI, publicações feministas mencionam a primeira poetisa do protestantismo, uma justa exaltação.

Existem mesmo, contudo, diferenças entre versos escritos por um homem e por uma mulher? Se não soubéssemos que saíram de sua pena, diríamos que são versos de uma moça da Pomerânia? Por que homens tão ocupados e sérios reconheceram seu engenho e sua arte? Ninguém sabe, nem saberá, mas talvez seja possível revelar a graça feminina dessa poesia.

Um autor, pai de meninas, poderia compor a música que expõe o segredo da imagem singela e da ternura direta. A melodia e o coral dizendo que Jesus é a estrela da Manhã, pois seu brilho é maior que o de todas as estrelas. Lá estão a valsa, a voz do soprano e o sopro inesgotável do flautim. Música que bem poderia ser composta por uma moça alemã.


Herr Christ, der einge Gottessohn,
Vaters in Ewigkeit,
Aus seinem Herzn entsprossen,
Gleichwie geschrieben steht,
Er ist der Morgensterne,
Sein' Glanz streckt er so ferne
Vor andern Sternen klar.


Senhor Cristo, filho unigênito de Deus,
Pai na Eternidade
De seu Coração germinado,
Conforme está escrito,
Ele é a Estrela da Manhã,
Seu Brilho tão longe alcança
Mais claro que as outras Estrelas.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

7

A música e os rios, de várias maneiras, são feitos de tempo. É da sua essência passar e nada mais fácil, portanto, do que expor, em música, o curso das águas de um rio. Corredeiras, cascatas, torrentes e mesmo simples gotas d'água têm uma fácil tradução musical, tão fácil que o mérito de um autor não está na associação, mas em sua chave. Primeiro, não estamos em um rio qualquer, mas no Jordão; depois, não estamos diante de uma cena bucólica, mas do batismo de Jesus; por fim, estão descritas as rasas águas, que correm entre pedras até as mãos de João, o Batista.

Até esse momento, portanto, a maravilha é pouca. As águas, contudo, não correm apenas nos rios; elas seguem também nas veias de um homem. O sangue derramado e as águas que batizam são feitos da mesma substância e podem ter expressão musical semelhante. Em lugar das torrentes feitas de cordas, um coração apenas, que pulsa ao som do violino.

Assim, nesse momento, a maravilha ainda é a mesma. Qual a razão, contudo, de todo esse teatro se não a promessa de Jesus? Quem crer e for batizado, esse será salvo e o segredo de toda a música se resolve no verso que, sem dúvida, acredita. Sobre ele estão os acordes que revelam a bondade de Deus para os que teriam dificuldade em crer.

As águas do rio Jordão e sua música não são, portanto, uma paisagem e seu comentário. São severas alegorias barrocas: escondem o sangue de Jesus e a voz de Deus. Como disse o coral, "os olhos viram apenas a água".


Christ unser Herr zum Jordan kam
nach seines Vaters Willen,
von Sankt Johann die Taufe nahm,
sein Werk und Amt zu erfüllen;
Da wollt er stiften uns ein Bad,
Zu waschen uns von Sünden,
Ersäufen auch den bittern Tod
durch sein selbst Blut und Wunden.


Cristo nosso Senhor veio até o Jordão,
segundo a vontade de Pai,
junto ao santo João, o Batista,
sua obra e destino cumprir.
Para nós um banho sagrou,
para de todo o pecado lavarnos,
ainda afogando a amarga morte
em suas chagas e sangue.


sábado, 13 de fevereiro de 2010

206

Nenhum filósofo há de curar minha alegria. Outros sentimentos podem ser purgados como doença seja no palco de um teatro, seja no susto de um trem-fantasma. Que poemas tristonhos levem de mim todas as lágrimas possíveis, a saudade de meus avós e o que poderia ter sido e não foi. Assim estará muito bem. Minha alegria, não! Quero-a bem guardada em minha alma para uso diário, gota a gota, não vou jogá-la ao vento em uma canção barulhenta.

E por isso a música feita para os rios da Saxônia, para aquela quinta-feira de outubro, não deve ser muito ouvida. Sua substância é o júbilo e a brincadeira feita com as ondas; sua lei, um poema de aniversário; sua promessa, o prazer de viver, pois perto de muita água todo mundo é feliz. A festa acabou há muito tempo e todos os que a cantaram estão agora mortos, mas essa música ainda quer roubar sua alegria, fazer sorrir e dançar até você cansar.

São tantas as maravilhas! Tritões nas ondas dos rios, um monarca dedicado ao amor, à beleza e à paz, açudes musgosos, águas tranquilas, flautas, ninfas e grotas: a idade do Ouro transposta em música. O passado oferece ao futuro invejoso a imagem da felicidade vivida e gozada.

Ao fim, sempre entristeço. O tesouro da alegria tanto guardada deixou algumas moedas douradas caírem nas ondas dos rios. As recolheram antigos fantasmas, reis saxões, figuras mitológicas, fontes e açudes; não estão mais comigo. O coro final, ao menos, promete, para o futuro, mais contentamento e prazer: é assim que seguem os rios.



Schleicht, spielende Wellen, und murmelt gelinde!
Nein, rauschet geschwinde,
Dass Ufer und Klippe zum öftern erklingt!
Die Freude, die unsere Fluten erreget,
Die jegliche Welle zum Rauschen beweget,
Durchreißet die Dämme,
Worein sie Verwundrung und Schüchternheit zwingt.


Deslizai, ondas a jogar, em delicado murmúrio!
Não, ide rápidas,
Fazei soar Margens e Rochedos!
A Alegria que faz crescer nossas Torrentes,
Que cada Onda a quebrar encaminha,
Transborda os Açudes,
Que suas surpresas e modéstia contêm.



quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

198

Pense em uma casa vazia onde vive uma orgulhosa mulher triste. Pense em uma renúncia que será celebrada apenas em silêncio. No tempo que vai passando à espera da morte. Em uma menina que nunca mais dançará. Na melhor resposta ao amor desprezado. Pense na redobrada aposta nas palavras do apóstololo, pois apenas a fé nos há de salvar e o resto é somente uma conduta honrada diante de nossos irmãos pecadores. Pense no significado do exemplo. Agora, ponha música sobre tudo.

Pois a rainha morreu como heroína e lutou em espírito, como nós também deveríamos. Contestou o braço da morte e não deixou que conquistasse seu peito. Não podemos mais lhe conceder coisa alguma, senão a companhia de um cortejo, a promessa da memória e a esperança de que o mal não prevalecerá. Sobre este luto ponha música.

Então ergue-se uma mística prece cujo tema espantoso é o azul safira da mansão celestial cuja luz transfigura a face de uma rainha morta e apaga de sua alma toda a tristeza que existe na Terra. Ela não está mais entre nós.

Não esqueceremos, ó Rainha, até o final dos tempos. Sabemos o que tínhamos em ti. Estamos sós, mas lembramos.


Laß, Fürstin, laß noch einen Strahl
Aus Salems Sterngewölben schießen.
Und sieh, mit wieviel Tränengüssen
Umringen wir dein Ehrenmal!


Deixa, Rainha, deixa ainda um Raio
Escapar das abóbodas de Salém tão cheia de Estrelas
E vê com quantos rios de Lágrimas
Cercamos teu Mausoléu!


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

100

Nosso destino é retornar. Em 1732, as regras que cada impõe a si mesmo para provar alguma coisa já não tinham mais tanta importância. A idéia de virtuosismo se esgotou e o artifício da citação revelou-se um mero exercício, como uma boa nota tirada na escola, transformada em uma lenda boba sobre si mesmo. O autor sente que deve se recolher para que a obra brilhe. O coral tem de cumprir sua vocação e exibir sozinho o seu significado.

É nesse momento que tímpanos e trompetes em toda sua glória terrena se erguem para celebrar a alegre aceitação do destino, da vida, do bem e do mal que nela houver. A vida precisa ser aceita inteiramente não com o sombrio misticismo dos antigos romanos, mas com a incessante alegria do fiel que crê e está reconcilidado com Deus. Filósofos podem celebrar o amor fati, mas apenas essa música traz a alegria de sermos quem somos.

O resto é quase uma convenção. As vozes humanas trazendo sua cor individual, cada com sua faceta para as estrofes do poema. Quem quiser que goste dessa ária; quem quiser que goste daquele dueto. Não importa muito, porque o coral foi finalmente revelado.

O que está feito, está bem feito e nisso perseveramos mesmo que seja dura a estrada, cheia de desassossego. As coisas que vivi são minhas, eu as guardo e elas paternalmente me protegem. Elas são a minha sina e hão de me guiar. A elas eu deixo comandar.



Was Gott tut, das ist wohlgetan,
Es bleibt gerecht sein Wille;
Wie er fängt meine Sachen an,
Will ich ihm halten stille.
Er ist mein Gott,
Der in der Not
Mich wohl weiß zu erhalten;
Drum lass ich ihn nur walten.


O que Deus faz, está bem feito,
Mantém-se justa sua vontade;
Quando governa meus assuntos,
A Ele hei de guardar em silêncio.
Ele é meu Deus,
Que na Tristeza
Sabe bem como me guardar;
Portanto a ele só deixo comandar.


terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

98

Contornos sempre podem ser diferentes. Tomada a decisão da referência, é inexorável a liberdade para os formatos. Não é preciso que o coral tenha, em torno do si, outro coro - um elemento do mesmo conjunto. Há o evidente risco de repetição e monotonia. Uma alternativa se apresenta naturalmente: um instrumento solista.

Cabe ao violino, então, um outro trabalho: expor as melodias que vão unir o coral da vontade de Deus com outra poesia. Sim, pois o formato do poema também pode ser abandonado, em favor de uma expressão mais lírica do sentimento de quem sofre com o destino. Aquilo que é feito e não aceitamos ainda que é ben feito.

Na verdade, o autor não se prende mais a nada. Os recitativos se estendem, falam do poder da prece, da porta aberta do Pai e tudo termina sem um coral. Ou melhor, com uma ária, cujo texto vem de outro coral. Os cordames de melodia já se romperam há algum tempo e apenas o violino sustenta agora o conjunto da obra.

A citação original sobre o que está bem feito quando está feito nem é mais lembrada nessa música de 1726.

Was Gott tut, das ist wohlgetan,
Es bleibt gerecht sein Wille;
Wie er fängt meine Sachen an,
Will ich ihm halten stille.
Er ist mein Gott,
Der in der Not
Mich wohl weiß zu erhalten;
Drum lass ich ihn nur walten.


O que Deus faz, está bem feito,
Mantém-se justa sua vontade;
Quando governa meus assuntos,
A Ele hei de guardar em silêncio.
Ele é meu Deus,
Que na Tristeza
Sabe bem como me guardar;
Portanto a ele só deixo comandar.