segunda-feira, 29 de março de 2010

62

Não existe outra palavra senão o mistério. A pobre carne do homem, a comida dos túmulos, o pasto de cães e de corvos, foi invadida pelo espírito de Deus. Ele escolheu sobre o mundo o mais espantoso campo de batalha e lutará contra o tempo, a dor e a morte. A História nunca mais será a mesma e o obscuro povo do deserto foi chamado a cumprir um terrível destino. Estamos condenados a assistir um prodígio inexplicável: Deus nasceu de uma virgem, uma pobre moça judia.

Não existe outra música sobre o mistério senão a cantata. O concerto italiano não sugere mais a agitação da alegria ou do curso da vida. É o espelho da mais estranha das estranhas angústias. O Salvador desceu a este mundo para o nosso bem, mas, com isso, tudo mudou. O tempo não mais corre à toa e a vida não tem mais o mesmo sentido. Está em jogo a salvação e também a condenação.

A angústia revelada pela melodia cheia de alarme e tensão se transforma depois em comentário da luta com a carne. Sabemos como a morte é penosa e como é insurpotável a dor. Jesus é o herói que há de lutar por todos. Assistimos, agora, a um combate; angustiados, esperamos o resultado dessa batalha.

A obra não resiste, contudo, a tanta tensão. Entrega-se de coração e finalmente oferece apenas o louvor a Deus, o Pai; a Deus, o Filho e a Deus; o Espírito Santo.


Nun komm, der Heiden Heiland,
Der Jungfrauen Kind erkannt,
Des sich wundert alle Welt,
Gott solch Geburt ihm bestellt.


Vem agora, Salvador dos Pagãos,
Filho da Virgem chamado,
Que maravilhou todo o Mundo,
O Senhor tal nascimento lhe deu.



61

Não existe outra palavra senão o mistério. O criador do infinito Universo, o criador dos números, de cada um dos átomos escolheu vir à Terra e assumir a carne de um homem. Como tantos deuses passados e futuros, Ele poderia exibir entre os homens sua glória e seu poder, fender os céus com relâmpagos e esmagar os exércitos com sua destra. Se Deus quisesse que todos os homens acreditassem, assim seria. Clemente e misericordioso, nasceu de uma virgem, uma pobre moça judia. Há nisso um sinal para os que crêem.

Não existe outra música sobre o mistério senão a cantata. A abertura francesa, imaginada para celebrar ínfimos monarcas terrenos e exaltar uma passageira glória, soa de forma sinistra e estridente, em tom de ameaça. Seus versos vieram do Apocalipse, da boca que anuncia ser o Alfa e Ômega, da boca de onde saía uma espada de dois gumes. As vozes, em fuga, celebram a maravilha do mundo e são elas mesmas a maravilha.

O mistério exaltado pela melodia terrível é depois repetido em um raro recitativo onde soa a voz de Jesus, de acordo com os versos do Apocalipse. O sentido da presença próxima é, então, redobrado: eu estou à porta e bato, para entrar em sua casa e cear. Não sou um distante deus de holocaustos e templos: estou ao lado, sentado à sua mesa.

A obra não resiste, contudo, a tanta tensão. Entrega-se de coração e oferece uma dos mais gloriosos corais criados pelo artista: eu não tenho medo; eu ansiosamente espero a presença.


Nun komm, der Heiden Heiland,
Der Jungfrauen Kind erkannt,
Des sich wundert alle Welt,
Gott solch Geburt ihm bestellt.


Vem agora, Salvador dos Pagãos,
Filho da Virgem chamado,
Que maravilhou todo o Mundo,
O Senhor tal nascimento lhe deu.



segunda-feira, 22 de março de 2010

149

A conciliação entre a música profana e a música religiosa está certamente nos três eixos de coordenadas cartesianas. Basta abandonar um conceito unidimensional de música, entendê-la como um objeto no espaço, livre das convenções do direito autoral ou de concepções simplórias das emoções humanas.

No eixo x, está a música que celebra o aniversário de um monarca esquecido e a promessa de segurança para as ovelhas. Ela invoca as paisagens amáveis e as horas de alegria, mas para demandar a eternidade. Vencida a tristeza, o coração está em júbilo em meio a trompetes e tímpanos. No eixo z, soa a música do Salmo do Senhor, o cântico de vitória dos justos em suas tendas. Agora ela celebra o poder da destra de Deus eterno que faz proezas.

No eixo y, que define a esfera de sons, as múltiplas alegrias se misturam com os sentimentos de vitória. A alegria de viver entre maravilhas convive com o pedido de graças e a segurança de quem está protegido, sejam os justos, sejam as ovelhas. Todos os pontos se unem no intenso desejo de eternidade, por isso cantamos a vitória e celebramos as visões que tanto prazer dão à alma.

A música profana, portanto, é apenas uma operação matemática: reduzir o valor de z a zero. Já a música religiosa reduz x a zero. Em qualquer caso, uma esfera de sons está implícita em + y ou - y. Seu volume, como se sabe, é um múltiplo do cubo do raio, definido em todos os eixos, profano ou secular.


Man singet mit Freuden vom Sieg in den Hütten der Gerechten: Die Rechte des Herrn behält den Sieg, die Rechte des Herrn ist erhöhet, die Rechte des Herrn behält den Sieg!


“Nas tendas dos justos há jubiloso cântico de vitória; a destra do Senhor faz proezas: A destra do Senhor se exalta, a destra do Senhor faz proezas” (Salmo 118, 15-16)

sábado, 20 de março de 2010

117

Sobrepor música a um coral é exercer a arte do comentário. O poema e a venerável melodia têm o seu lugar determinado no calendário e no culto; todos estão a par de seu sentido cotidiano. Assim, dar a Deus o louvor e a glória parece demandar um solenidade específica, mas o autor aqui sugere uma dança, no ritmo da alegria, como se louvar a Deus fosse coisa leve e divertida. Afinal, insiste o poema, ele fez maravilhas e nosso ânimo enche de amparo.

Mal encerrado o coro, este sucesso já parece minguado. Um comentário, por mais brilhante que seja, está condenado a acompanhar o texto que examina ou a canção que exalta. Apresentar uma nova versão para a alegria do louvor é coisa fácil, um feito quase protocolar.

Então, como quase sempre, uma ária para alto revela uma outra intenção. Não basta a alegria e vem a promessa de cantar, por toda a vida, a glória do Senhor; espalhar seu louvor por todos os cantos. Nesses momentos de confissão, vem o som das flautas e uma melodia cheia de ternura.

Não seria excessivo ouvir nessa ária tão delicada e gentil um testemunho de seu próprio autor, que também passou sua vida a espalhar, por toda a parte, o louvor de Deus. Na obra quase convencional em seu fundamento litúrgico, estamos ouvindo nesse ponto coisa bem mais íntima, quase um testamento, sublinhado com uma melodia inesquecível.


Sei Lob und Ehr dem höchsten Gut,
Dem Vater aller Güte,
Dem Gott, der alle Wunder tut,
Dem Gott, der mein Gemüte
Mit seinem reichen Trost erfüllt,
Dem Gott, der allen Jammer stillt.
Gebt unserm Gott die Ehre!

Louve-se e honre-se ao Bem Supremo,
Ao Pai de todos os bens,
Ao Autor de todos os milagres,
Ao Deus que o meu ânimo
Com abundante consolação robustece,
Ao Deus, que apazígua todas as mágoas.
Glorificai o nosso Deus!




segunda-feira, 15 de março de 2010

169

Longe dos desertos de areia o apelo do ascetismo se enfraquece. A verdade é que a vida é cheia de pequenos prazeres e com a passagem dos anos o coração vai se apegando à doçura da música, das manhãs gastas em preguiça e às pequenas coleções que todos fazemos, mesmo sabendo que um dia serão dispersas. Por que não amar as vozes das crianças, o perfume do travesseiro ou a luz sobre a água do mar? E assim, secretamente, mesmo sem avareza, vamos acumulando tesouros na Terra, desses que os ladrões roubam e os ratos róem.

Para devolver os corações apenas a Deus é preciso transformar em antídoto o que é veneno. Desvelar a presença divina no que pode ser belo nesse vale de lágrimas. Produzir uma exaltação sensual que anule a si mesma e é por isso que a mais brilhante das árias pede a morte da arrogância, do amor às riquezas, do prazer do olhar e os desejos da carne. Uma promessa de negação desse mundo que usa precisamente suas armas mais esplendorosas e seus encantos mais emocionantes.

A música é brilhante, retirada de um concerto dedicado a finos salões e a um educado público, mas não estou certo de que sua intenção realmente funcione. Entre a invocação da morte das paixões pelas coisas desse mundo e a beleza de uma melodia inesquecível, a alma hesita, quer ouvir uma vez mais e, portanto, peca. Os desejos da carne não estão verdadeiramente mortos.

Ou talvez seja apenas mais uma versão daquela famosa oração. Um dos santos, quando jovem, pedia continência e recato para sua vida de loucuras e amores; pedia e ponderava: agora não, todavia. É como a ária para soprano: morrei em mim, sim, mas não agora. Fiquemos um pouco mais em nosso jardim.


Gott soll allein mein Herze haben.
Zwar merk ich an der Welt
Die ihren Kot unshätzbar hält,
Weil sie so freudlich mit mir tut,
Sie wollte gern allein
Das Liebste meiner Seele sein.
Doch nein; Gott soll allei mein Herze haben:
Ich find in ihm das höchste Gut.
Wir sehen zwar
Auf Erden hier und dar
Ein Bächlein der Zufriedenheit,
Das von des Höchsten Güte quillet;
Gott aber ist der Quell, mit Strömen angefüllet,
Da Schöpf ich, was mich allezeit
Kann sattsan und wahrhaftig laben:
Gott soll allei mein Herze haben.

Que somente Deus tenha meu Coração!
Bem vejo que o Mundo,
que seu Excremento entende precioso,
amistoso quer fazer-se a mim,
quer e insiste assim
ser caro a meu Coração.
Mas não! Que somente Deus tenha meu Coração!
Nele encontro meu supremo Bem.
Bem podemos ver
Na Terra, aqui e ali,
correrem Rios de Paz
nascidos da Bondade do Altíssimo,
porém Deus é sua Fonte, de Corrente caudalosa,
dela retiro o que para sempre,
pode deveras e à saciedade me consolar
Que somente Deus tenha meu coração!




quarta-feira, 10 de março de 2010

22

Quem invoca um número invoca um símbolo e Jesus chamou a si os doze. Não se fala a doze pessoas em voz baixa e o anúncio era ainda incompreensível. Todos iriam a Jerusalém para cumprir o destino do Filho do Homem, que seria escarnecido e injuriado, para ressuscitar no terceiro dia. Diz o Evangelista que os doze nada entendiam porque a palavra lhes era encoberta.

O fiel, contudo, não tem o benefício dos doze. Tal como Jesus, sabe o que vai acontecer e quando ouve o tenor cantar o versículo entende a natureza do chamado. Deve estar pronto, como Jesus, para subir a Jerusalém e enfrentar sua própria paixão. A morte de cada um se revela como trajeto: ao hospital, ao local de um acidente ou a um momento imprevisto. Como diz a canção, é preciso estar preparado.

Como Jesus, pronto de ânimo e coração e chamar os seus doze ou mais ou menos. Livrar-se do inútil, do que é pesado, das ânsias da carne e jogar tudo ao chão. Alcançar, antes de tudo, a Paz.

O coral, então, resume e conclui: mata-nos com tua bondade/ desperta-nos com tua graça. Os doze de nada sabiam quando foram chamados; a música já sabe, antecipa e adverte.



Tenor
Jesus nahm zu sich die Zwölfe und sprach:
Bass
Sehet, wir gehn hinauf gen Jerusalem, und es wird alles vollendet
werden, das geschrieben ist von des Menschen Sohn.
Coro
Sie aber vernahmen der keines und wussten nicht, was das gesaget war.

“E, tomando consigo os doze, disse-lhes:
Eis que subimos a Jerusalém, e se cumprirá no Filho do
homem tudo o que pelos profetas foi escrito.”
“E eles nada disto entendiam, e esta palavra lhes era encoberta, não percebendo o que se lhes dizia”
(Lucas 18, 31, 34)



segunda-feira, 8 de março de 2010

202

Elisabete Juliana foi batizada no dia 5 de abril de 1726. Tinha um apelido familiar - Lieschen - e casou tarde para uma moça de seu tempo, em janeiro de 1749, aos 23 anos de idade. Devia ser bonita e prendada, pois foi a única de suas irmãs a casar, mas teve ajuda de seu pai. O marido, João Cristóvão, era seu aluno e ganhou o primeiro emprego por sua indicação. Elisabete não tinha como saber, no dia de suas bodas, que ficaria viúva uma década depois, nem que seu filho, que levava o nome famoso não compleria um ano de idade.

Em janeiro de 1749, a noiva não precisava se preocupar, ao menos, com a música de suas bodas. Seu pai estava nesse negócio há algum tempo e a família certamente ganhava também seu pão cantando e tocando em casamentos. Com que gosto, então, não cantaram e tocaram naquele dia tão belo para Elisabete Juliana.

Bem pode ter sido essa música que descreve com a mais espantosa doçura a simples entrada da noiva na igreja ao lado de seu pai: ela é a flor que anuncia o reino de Flora. Bem pode ter sido a música que divertida lembra que melhor que os deleites de Flora são os deleites do Amor. Nenhum casamento teve música mais brilhante.

Ao fim da cerimônia, naqueles dias, os noivos recebiam a partitura devidamente enrolada, atada com um laço de fita vermelha, como um presente de casamento e testamento do artista que modestamente iluminou a humana festa. Se naquele dia, seu pai entregou a Elisabete esta partitura, que presente não foi!


Weichet nur, betrübte Schatten,
Frost und Winde, geht zur Ruh!
Florens Lust
Will der Brust
Nichts als frohes Glück verstatten,
Denn sie träget Blumen zu.


Ide-vos, tristes sombras,
Vento e Geada, descansai!
O deleite de Flora
Aos Peitos há de trazer
Nada senão Ventura,
Pois ela vem plena de Flores.

 

quarta-feira, 3 de março de 2010

131

O medo da escuridão nos atinge de muitas formas. E nem é tanto a treva da noite, mas a cegueira, a falta de rumos, o silêncio da solidão. Em meio à neblina, os barcos devem tocar suas sirenes, as bóias, no mar, têm sinos. Quando acaba a eletricidade, as crianças ficam ansiosas e caladas; no retorno da luz, há gritos de festa. O problema nunca é a escuridão em si mesma, mas o medo do que nos espera.

Muitas são as formas de clamar. Podemos pedir o perdão na noite escura da alma, declarar a esperança na palavra daquele que há de nos salvar e também prometer a vigília de uma madrugada à outra, como Davi e Manassés. A receita da música é manter sua integridade em um mundo sem luz. Guardar e vigiar para que os monstros não saiam de dentro de nós.

Assim, a grande música se revela uma forma de profecia. Não basta explorar a intenção estética do livros dos Salmos. Mesmo cego, o artista expõe dramas futuros. Em 1708, o verso que recomenda a Israel esperar no Senhor, cantado em alemão, é o reconhecimento emocionado de que os povos germânicos também são contados entre os filhos de Abraão. Em 1945, o mesmo verso apontava para a sombria tragédia que representa a recusa dessa filiação e também para a necessidade da esperança.

A escuridão está sempre à espreita. Acenda uma vela, pois, ou guarde em seu coração a música do rapaz de 23 anos, órfão de pai e mãe, que sabia muito bem como lutar contra a treva da tristeza.



Aus der Tiefe rufe ich, Herr, zu dir.
Herr, höre meine Stimme,
Laß deine Ohren merken auf die Stimme meines Flehens!


Das profundezas eu clamo, Senhor, por Ti.
Senhor, escuta a minha voz;
Estejam os Teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas!
(Salmo 130: 1, 2)



segunda-feira, 1 de março de 2010

64

O apego à vida pode pesar, tragicamente, sobre todos os nossos momentos. Os fatos, os afetos, a beleza sonhada e vivida estão condenados desde o nascimento e de pouco adianta o temor da perda. Os tempos hedonistas de nossa civilização pretendem esconder essa verdade produzindo uma vertigem de fatos, afetos e belezas. O noticiário promete novidades todos os dias e acreditamos, pois é de suma conveniência. Muitas pessoas sensíveis, porém, não suportam a impostura e preferem aniquilar o mundo ou a si mesmas.

Temos, assim, também de nos habituar com a exaltação continuada dos que partem e dos que pelejam com esse Mundo. Gozam, mas gozar é insuportável; viajam, mas clamam no deserto porque o retorno é inevitável. A revolta tornou-se um sentimento de alto prestígio e há profissionais e amadores da revolta contra esse Mundo. Queriam-no permanente e definitivo - não é uma coisa, nem outra.

A interrogação do Mundo tem outros caminhos. A percepção de que o ouro é bem passageiro e que a riqueza é tomada de empréstimo pode dar origem a uma canção suave como uma lembrança da juventude. O Mundo é fumaça e como disse o Imperador, fui tudo e nada vale muito a pena. Estamos sempre nos despedindo: estejamos, portanto, à altura da ocasião.

Nossa morte é como um sono. A existência não merece mais do que árias delicadas, vozes de sopranos e contraltos e um respeitoso "Boa Noite".


Sehet, welch eine Liebe hat uns der Vater erzeiget, dass wir Gottes Kinder heißen.


“Vede quão grande caridade nos tem concedido o Pai, que fossemos chamados filhos de Deus”.
(Primeiro Epístola de João 3, 1)