quarta-feira, 28 de abril de 2010

182

Por várias vezes, caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro, fui abordado por pregadores evangélicos que me perguntavam com ênfase se havia recebido a Jesus em meu coração. Por não ser um dos crentes e mesmo sem muita certeza sobre a sinceridade dos que me interrogavam, não deixava de sentir o desafio espiritual lançado por aqueles humildes personagens, em seus ternos baratos, suas Bíblias puídas, ao condescendente e racional estudante universitário. A fé em Jesus é uma fé como tantas outras a questionar o homem com sua exigência extrema de compromisso existencial.

Foi também nas ruas do Rio de Janeiro onde encontrei a loja de discos usados em que comprei um velho LP com essa música. Desde que ouvi sua sinfonia e seu coro pela primeira vez, imagino ter compreendido melhor o desafio evangélico e também a arte de seu eminente autor. Eles cantam a entrada de Jesus em Jerusalém, no domingo de Ramos, mas na verdade a música não trata da famosa cidade e apenas faz referência ao evento do Evangelho. A música é sobre a entrada de Jesus no coração de cada um, ao mesmo tempo com humildade e com festa. Um cântico de boas vindas para aquele que nada quer lhe roubar.

As demais árias, todas brilhantes e cheias de ternura, vão recapitulando as várias experiências pessoais de quem recebeu a Jesus, a contemplação de seu amor, o sentido de submissão, o desejo de segui-lo no bem ou no mal.

A solução de toda obra, contudo, vem no coro final. Nele está evidente que o Rei dos Céus abre o caminho para a Salém da Alegria, mas quem o segue de perto, jogando ao alto guirlandas de música, é o autor dessa obra tão delicada e emocional.



Himmelskönig, sei willkommen,
Laß auch uns dein Zion sein!
Komm herein,
Du hast uns das Herz genommen.


Rei do Céu, sê bem-vindo,
Deixa-nos ser tua Sião!
Vem, vem,
Tu hás nosso coração cativado.



segunda-feira, 26 de abril de 2010

181

Haveria uma música para a frivolidade humana? Nada de brilhos e fanfarras vienenses para celebrar passatempos, mas uma música moral capaz de condenar a tolice e a perda de tempo com assuntos irrelevantes sem o rigor sombrio de um sermão. Sem infundir beleza ao que não tem substância e sem investir em carolice. É o que faz essa falsa música galante, cheia de saltos e notas rápidas.

Depois, certa agitação ao órgão começa a lembrar dos riscos das preocupações terrenas, o alimento do fogo eterno e do tormento do inferno. Depois de falsear a si mesmo, a música retoma a seriedade e a angústia diante das consquências de nossos atos. O peso da recusa da Palavra.

A obra, contudo, não pode terminar nesse confronto preocupante entre a frivolidade e as penas prometidas aos inconsequente e aos tolos. A Palavra precisa retomar o brilho de sua promessa e o coro final restaura a seriedade estética com uma bela frase para o trompete e a elegante polifonia vocal. Esta sim é a verdadeira alegria da alma.

A idéia de música como sermão ou mera expressão de uma lição ética costuma dar origem a mistificações das mais variadas ou empoladas reinvidicações de superioridade moral. Ou mesmo errar completamente o alvo, elogiando o vício a ser denunciado. Não é o caso, aqui.


Leichtgesinnte Flattergeister
Rauben sich des Wortes Kraft.
Belial mit seinen Kindern
Suchet ohnedem zu hindern,
Dass es keinen Nutzen schafft.

Frívolos espíritos agitados
Roubam de si o Poder da Palavra.
Belial com suas Crias
De todo jeito a prejudica
Para que não tenha Proveito.


sexta-feira, 23 de abril de 2010

180

Tudo que merece ser sabido encerra algo de belo, mas não está claro se Deus busca a beleza nas almas. Ele as criou e pôs a salvação como prêmio da fé. Concedeu ao homem o livre arbítrio para fazer escolhas morais corretas e não para se conduzir da forma mais agradável ao olhar. Por que recusar, contudo, esta dádiva, uma vez que horrendo é o pecado? Assim, a alma em seu caminho se enfeita como uma noiva e vem para a luz.

O propósito dessa música, sem qualquer dúvida, é a oferta graciosa do belo. São flores brancas, diáfanas telas, pérolas musicais, flautas em arranjos delicadamente feitos sobre fios de cabelo, penteados e perfumados. Ela se prepara, examina, olha no espelho, pois não há mais dúvida sobre a vinda da salvação e do encontro sob a luz. Precisa estar bela como a noiva.

Como sempre há de ser, depois da preparação vem a festa e o mais terno dos recitativos celebra os dons da ceia celestial e a fome e a sede de quem espera. O coral encerra a música anunciando que Jesus é o verdadeiro pão da vida.

Muita tinta correu e ainda correrá no debate sobre o sentido da música e sobre a teoria dos afetos: o assunto desafia a existência de uma demonstração rigorosa. Aqui, porém, o artista superou com brilho inegável o desafio de traduzir em sons a intenção da alma de estar bela, como pede o verso do coral.


Schmücke dich, o liebe Seele,
Laß die dunkle Sündenhöhle,
Komm ans helle Licht gegangen,
Fange herrlich an zu prangen;
Denn der Herr voll Heil und Gnaden
Läßt dich itzt zu Gaste laden.
Der den Himmel kann verwalten,
Will selbst Herberg in dir halten.


Atavia-te, ó Alma querida,
Deixa o sombrio fosso do Pecado,
Vem para a brilhante Luz que se fez,
Põe-te gloriosamente a resplender;
Pois o Senhor da Salvação e da Graça
Deixa-te vir como Hóspede.
Aquele que o Céu comanda,
Em ti encontrará um Albergue.

 

segunda-feira, 19 de abril de 2010

173

São muitos os paradoxos criados pela presença imediata de Deus na História e assumir a carne e o sangue de um homem não é o menor deles. Esse é o escândalo da religião de Cristo. Muitas heresias se levantaram em revolta contra a presença do insondável Criador do Universo na matéria da frágil forma humana. A poesia e esta música não parecem estar, portanto, à altura da ocasião.

Os versos registram sem maior brilho a abundância dos bens enviados por Deus aos homens, a obrigação de cantar em agradecimento e de apresentar a boa oferenda. A deliciosa música, ao que tudo indica, veio de uma prosaica celebração secular e presta seus respeitos à boa ordem no principado de Kothen. Há quem veja nesta conjugação de verso e música apenas um exemplo de expediência artística.

Pensemos, contudo, um pouco mais, movendo nosso ponto de vista do espantoso milagre cósmico da Encarnação para seu sentido mais terreno. E se subitamente nossa carne e nosso sangue tão vulneráveis à dor, à doença, ao sofrimento, recebessem a promessa da redenção?

Não seria o mundo, então, doce como uma serenata musical? A exaltação de Deus não estaria cheia de amor como um leve dueto italiano? Bem seria uma forma de transfiguração: Jesus trouxe a paz e essa é a música da paz.


Erhöhtes Fleisch und Blut,
Das Gott selbst an sich nimmt,
Dem er schon hier auf Erden
Ein himmlisch Heil bestimmt,
Des Höchsten Kind zu werden,
Erhöhtes Fleisch und Blut!


Carne e Sangue exaltados,
Que Deus sobre si mesmo tomou,
A que ainda na Terra
Uma celestial salvação foi outorgada,
para que se façam Filhos do Altíssimo
Carne e Sangue exaltados.


sexta-feira, 16 de abril de 2010

170

É música que desvela a beleza além das palavras, mas por que não tentar ao menos capturar esse suspiro de felicidade? Ela é como a sensação de fazer o bem em segredo, como pediu Jesus; é como velar o sono de quem dorme sob nossa guarda; como o azul que só existe nas memórias de infância; como a delícia de cantar versos tão belos, o prazer de usar a voz e ouvi-la cantando a felicidade; é como aquela tristeza peculiar que nos vêm quando a tarde cai e estamos em maio.

É como o prazer de estar agasalhado em um dia muito frio; de guardar um segredo muito bom; é música feita para despertar devagarzinho e feita para dormir enquanto o sol se põe; é música para a janela do avião quando há tantas nuvens brancas e a linha do horizonte se tinge de vermelho. Vamos ouvindo, mas ela vai cansando as palavras e desbotando as imagens, seguindo sempre à frente.

Não se deve, portanto, ouvi-la muitas vezes. Quando termina, ficamos tristes: não somos dignos de sua companhia. Como a ninfa das ilhas, ela permanece sempre jovem e bela, enquanto envelhecemos. Precisamos partir.

O deleite desse mundo é apenas um reflexo, uma lembrança, um amparo enquanto a ventura celestial não chega. Então, não é surpresa que a última ária fale alegremente do desgosto de viver. Que nos resta aqui na Terra depois de provar desta sombra da felicidade?



Vergnügte Ruh, beliebte Seelenlust,
Dich kann man nicht bei Höllensünden,
Wohl aber Himmelseintracht finden;
Du stärkst allein die schwache Brust.
Drum sollen lauter Tugendgaben
In meinem Herzen Wohnung haben.


Deleitosa Paz, amado desejo da Alma,
A ti não se encontra no Inferno dos Pecados,
Mas justo na Concórdia do Céu;
Apenas tu fortaleces o fraco Peito.
Assim hão de os altos dons de Virtude
Em meu Coração Morada encontrar.


segunda-feira, 12 de abril de 2010

42

Se as emoções humanas podem ser expressas em música é razoável supor que a música possa criar, ela mesma, emoções antes desconhecidas. Sendo esta proposição correta, concluímos que as possibilidades da música são bem mais amplas que aquelas induzidas pela biologia ou nossa vida social. Nunca se sabe o que está à espreita em uma partitura.

Na tarde daquele mesmo sábado, a tensão e a tristeza da Paixão começavam a se dissipar. O que era morte e luto perdia seu sentido e Jesus dava provas de sua presença. Ele não era mais um homem como nós, mas estava vivo em nossa companhia. A lembrança da tragédia era fresca, mas havia razão para se alegrar. Essa mistura de sofrimento redimido e expectativa das boas coisas está na delicada sinfonia.

O resto é celebração da presença, quando dois se reúnem em seu nome, quando Jesus se revela como escudo na perseguição.

Os artistas quase sempre se vangloriam de expressar sentimentos que estão dentro de nós. Essa música transita no sentido inverso. Nos convida a sair e ver coisas novas, experimentar sentimentos que não sabíamos existir. Sugere emoções.


Am Abend aber desselbigen Sabbats, Da die Jünger versammlet Und die Türen verschlossen waren Aus Furcht für den Jüden, Kam Jesus und trat mitten ein.


“Ao cair da tarde daquele dia, o primeiro da semana, trancadas as portas da casa onde estavam os discípulos com medo dos judeus, veio Jesus, pôs-se no meio” (João 20,19)



sábado, 10 de abril de 2010

146

O solista é, ele mesmo, uma metáfora*. Ainda assumindo um papel destacado da orquestra e desenvolvendo seu próprio discurso musical, o instrumento não tem como fugir de sua intenção original ou de sua tradição. A biografia tende à história; o filho reflete a família. Quando o autor chama o órgão à frente da orquestra, deixando o contínuo para seus sucedâneos, está convocando a poderosa e solitária voz de Deus para o tumulto da orquestra.

Sem reproduzir a melodia coral, que é o fundamento da fé e o domínio do instrumento, o órgão transmuta a peça galante em intenção religiosa. A maestria do equilíbrio entre o ritornello e a orquestra se desdobra em outro plano: a compreensão de que o triunfo virá por meio de dificuldades e lutas, respostas, ataques, contra-ataques, resoluções, disposição para o confronto, tribulação. Em seguida, o que era pausa e prazer se revela como ascensão ao reino estrelado do Céu.

Quanto ao resto, apenas outras versões do Espírito, que sopra por onde quer. Flautas para o lamento, flautas para a semeadura das lágrimas, os oboés para o canto da alegria futura, quando teremos a luz das estrelas e o brilho do Sol. O coral consagra o curso da obra que da tribulação caminha à certeza do Reno dos Céus.

Quem guarda, contudo, essa música na memória, guarda o truque e a mensagem. A severa voz musical de Deus arrebatando a música galante - o que era brilho da mente criadora era também a trabalho do espírito. O que era música, era também soteriologia. Como a matéria e a energia, são a mesma coisa, se prestamos atenção.


Wir müssen durch viel Trübsal in das Reich Gottes eingehen.

“Pois que muitas tribulações nos importa entrar no Reino dos Céus” (Atos 14, 22).








* A expressão solista metafórico foi criada por Laurent Dreuyfuss para descrever exatamente o uso do órgão como solista em várias cantatas do autor.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

79

Existe aqui certamente um tipo maravilhoso de inocência. É preciso atenção para perceber, deixar que o ouvido se enrede na aparente turbulência de trompetes e tímpanos. Sob o esplendor barroco e sob a glória de uma melodia feita para acompanhar as ondas do mar e os cortejos magníficos, filtra-se a ingenuidade dos versos do Salmo, a confiança alegre das crianças que correm em um pátio. Ouvimos e queremos ouvir de novo: ela nos devolve a infância, a crença absoluta em um mundo bom, o gosto de estar protegido e seguro.

Esse mundo tão sem perigos nunca envelhece. A ária para soprano canta deliciosa e declama contra cães blasfemadores, soando quase engraçada. Para que não esqueçamos, contudo, a fanfarra, ela retorna de tão gostosa, agora como prece de graças ao Senhor. O dueto seguinte repete a mesma alegre inocência: é um jogo de vozes, uma corrida, uma disputa, cujo som, uma vez ouvido, nunca é esquecido.

No coral final, acabou a merenda e tocou o sinal do fim do recreio. As crianças fazem silêncio e a professora comanda uma prece, o pedido para que tudo continue como é, para que nossos corações continuem inocentes: guarda-nos na verdade, dá-nos a liberdade. Quando chega essa música, é quase noite.

Bendito seja o artista que, não tendo como nos devolver a inocência alegre dos dias de criança, abre uma delicada janela. Dela ao menos contemplamos o que perdemos, o que não temos mais. Bendito seja o seu nome.


"Gott der Herr ist Sonn und Schild. Der Herr gibt Gnade und Ehre, er wird kein Gutes mangeln lassen den Frommen."


“O Senhor Deus é sol e escudo; o Senhor dará graça e glória; não negará bem algum aos que andam na retidão.” (Salmo 84, 12)