quinta-feira, 27 de maio de 2010

1

Os antigos poemas que celebram os heróis produzem tanta mágica com singelos apodos. A um, os versos chamam domador de cavalos; a outro, eversor de cidades; não ouvimos mais os acordes da lira e da flauta, mas não esquecemos as palavras. Para cantar o nascimento do invencível herói de Judá, teremos, contudo, de novo o sopro da música mais radiante e o rapsodo somará seus nomes de tal forma que os séculos não poderão esquecer.

Pois o Anjo veio diante de Maria para dizer que ele é como a Estrela da Manhã, cheio da Graça e da Verdade do Senhor, e é o doce rebento de Jessé e também o Rei e o Noivo de minha alma. O coração salta, como as notas na partitura, e dançamos e cantamos porque uma criança vai nascer e não há notícia como essa em todo o mundo.

Não há mais como conter o espantoso esplendor barroco dessa música. Ela se expande para falar de chamas que consomem os peitos, a gozar ainda na Terra nas declícias celestes, prometer a consumação de bocas e notas que jamais cessarão de trazer cânticos de louvor. É ela mesma o louvor para o grande Rei, promessa que cumpre em si mesma.

E quando esperávamos o cansaço, a contrição e a prece, o compositor diz  que está profundamente feliz. Invoca o coral do Alfa e do Ômega, ergue dois Améns ao céu e afirma que ansiosamente espera. Não demores, pois.

Wie schön leuchtet der Morgenstern
Voll Gnad und Warheit von dem Hern,
Die süBe Wurzel Jesse!
Du Sohn Davids aus Jakobs Stamm
Mein König und mein Bräutigam
Hast mir mein Herz besessen,
Lieblich
Freudlich
Schön und herrlich
GroB und ehrlich
Reich von Gaben,
Hoch und sehr prächtig erhaben.


Como brilha a estrela da manhã,
Plena da Graça e Verdade do Senhor,
Doce rebento de Jessé!
Tu, filho de David, do ramo de Jacó
Rei e Noivo
Arrebataste meu coração
Com amor
Com alegria
Belo e poderoso
Grande e digno
Rico de dons
Alto, mui augusto e elevado.



terça-feira, 18 de maio de 2010

4

Na primeira camada de significados está a terrível história judia, a libertação do povo de Israel do cativeiro no Egito, quando a mão de Deus feriu a Terra e os homens. Sobre ela, vem a ressurreição de Jesus, a Páscoa definitiva, quando o primeiro o judeu, depois o grego, recebem a promessa da vida eterna. Então vêm a poesia e a música que trouxeram a luz para as florestas e pântanos dos germanos, soando em meio a brumas e ao frio intolerável para proclamar que Jesus está novamente alevantado. E depois vêm a exaltação da fé protestante diante do sepulcro e da mortalha.

Como se não bastasse, o compositor decide evitar qualquer ornamento. O texto e a melodia do coral soam em toda sua noturna severidade, porque afinal o sangue marca a porta do crente e o Cordeiro sacrificado arde amoroso no alto do madeiro da Cruz. As vozes se inflamam; o contraponto é veículo da angústia. A música se transforma escultura - um crepuscular retábulo de sons ocres.

Mas o contraponto é também veículo da luta e da libertação; posto que o aguilhão tombou; o carrasco não pode mais nos ferir e o próprio nome da Morte é escárnio. Há combate e violência e uma morte devorou a outra Morte. Celebra-se uma alta festa e a noite acabou. O crepúsculo, na verdade, era amanhecer.

Mesmo tão pejada de símbolos, de memórias e de séculos, essa música não se verga, nem perde a direção. Quer ser precisamente um hino de combate e de vitória e consegue.


Christ lag in Todesbanden
Für unsre Sünd gegeben
Er ist wieder erstanden
und hat uns bracht das Leben;
Des wir sollen frölich sein
Gott loben und ihm dankbar sein
und singen Halleluja!
Halleluja!

Cristo jaz em mortalhas
por nossos pecados levado.
De novo ele está alevantado
E a nós trazendo a Vida
Devemos todos, alegres,
Dar graças, louvar a Deus
E cantar Aleluia!
Aleluia!



segunda-feira, 10 de maio de 2010

103

Quando estamos com febre, o mundo nos parece penoso e estridente. O ritmo das coisas nos incomoda, já não podemos acompanhá-lo. Se as crianças brincam no pátio, se a música soa mais alto, se há alegria em torno, não suportamos e pedimos silêncio. A alegria do mundo, porém, não se cala e soa aguda como o flautim que percorre essa partitura malsã. Choramos e nos lamentamos, mas ninguém se importa com nossa tristeza. Estamos doentes porque Jesus nos deixou e apenas ele pode transformar a tristeza em alegria.

O compositor dessa música não ficaria surpreso com a descoberta moderna de que a tristeza é uma forma de doença, talvez o primeiro sintoma de uma grave enfermidade. A depressão contemporânea tem início com pensamentos sombrios e circulares e com uma decidida irritação com o mundo. Hoje como ontem, o triste busca o isolamento dos flautins da vida. A melancolia do passado sentia a ausência de Jesus, mas ao menos elevava sua prece ao único médico da alma.

Nesse ponto, a mágica acontece e o mesmo instrumento que descrevia o riso jogado à face dos que estavam tristes e lamentavam sustenta a ária que declara a busca do único médico da alma, aquele por quem o coração espera.

O resto é consequência e metáfora. Os saltos da ária para tenor são os paralíticos que se levantam por ordem de Jesus e os que dançam porque ele há de voltar. No coro final, Jesus afirma que o sofrimento se transformará em bem aventurança. Os sons do flautim são apenas uma lembrança.


Chor
Ihr werdet weinen und heulen, aber die Welt wird sich freuen.
Bass
Ihr aber werdet traurig sein.
Doch eure Traurigkeit soll in Freude verkehret werden.


Coro
Chorareis e lamentareis, mas o mundo se alegrará.
Baixo
E vós estareis tristes; mas a vossa tristeza se converterá em regozijo. (Jo. 16, 19)