Não se entende muito bem porque os anjos devem ter asas. As direções do céu e da terra e o peso dos corpos existem apenas para os seres feitos de carne. Para Deus, não existe o alto ou o baixo, o norte e o sul; e seus anjos, como o Espírito, vão por onde querem. As asas são apenas para nossos olhos, para nosso entendimento preso à Terra: em verdade, os anjos de nada precisam para nos cercar em redemoinhos, por todos os lados, pois é certo que se movem.
Assim, sempre que há anjos, sobre a manjedoura, ou chamando pastores, ou presidindo benfazejos a abertura de um novo ano, a música do compositor não fala de asas: prefere deixar esses acordes para as águias. Sempre que há anjos, as melodias flutuam em torno de nós, cheias de certo mistério, em turbilhões que diríamos sombrios, quase noturnos. Uma presença que é como o vento, para o qual não há norte, nem sul, nem alto ou baixo, bate as janelas, arrepia a pele, empurra a branca vela dos barcos.
Como o ano novo sempre chega após a meia-noite, a cantata ergue, em seguida, ao céu escuro uma prece solene, pois a boa mensagem chegou: o menino nasceu e nada mais - os portões do Inferno, o Diabo - pode nos roubar da consolação. É noite, podemos estar em febre, podemos estar com medo, mas estamos protegidos.
É, portanto, tempo de cantar, tempo de alegria, como anuncia o coral. Os anjos estão aqui e também o pequeno Jesus. Feliz Ano novo!
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
25
Comentadores descrevem esse coro inicial como "pleno de arte". De fato, intrincado ele é: as palavras do Salmo 38 são elaboradas primeiro em uma fuga coral, cujas vozes são, em seguidas, trocadas; depois, nova fuga coral, sobre outro verso, e, por fim, uma combinação de ambos os temas. Enquanto isso, flautas e metais cantam o hino de Leo Hassler, "Ah Senhor, pobre de mim pecador". Solene, estranha, insólita - a música descreve com rigor a paradoxal situação da carne, vulnerável à doença e ao pecado.
A floresta de referências musicais e religiosas prossegue no recitativo do "mundo como hospital", uma metáfora tão viva na obra de Sir Thomas Browne como em um quarteto de T.S. Eliot. É surpreendente notar a semelhança textual entre a seção IV de East Coker e o poema musicado pelo Mestre, provavelmente escrito por Picander. A mesma meditação sobre o nosso estado nesse mundo, nossa ilusória saúde e sobre nosso verdadeiro médico, the wounded surgeon, nas palavras de Eliot; Herr Jesu, no verso da ária para baixo.
Até esse ponto, há apenas uma obra prima musical, entrelaçada com imagens poéticas capazes de chegar ao século XX. Então, surge a ária para soprano cujo sopro delicado e gentil, quase etéreo, afasta a sombra do luto trazida pelas peças anteriores. É uma prece dirigida ao doutor Jesus, pedindo graça, oferecendo louvor. Há mais, contudo.
É evidente o contraste entre a espantosa beleza musical da peça e seu texto. O poema diz que, quando o compositor estiver no coro dos anjos, sua música soará melhor. A melodia ouvida na cantata, portanto, é de menor qualidade, ligada à carne do homem. Ou estará o compositor anunciando, desde agora, como será a música do Paraíso? Ou compondo como se lá estivesse? Ou menosprezando de forma oblíqua uma de suas melhores criações? Espelhos diante de espelhos...
A floresta de referências musicais e religiosas prossegue no recitativo do "mundo como hospital", uma metáfora tão viva na obra de Sir Thomas Browne como em um quarteto de T.S. Eliot. É surpreendente notar a semelhança textual entre a seção IV de East Coker e o poema musicado pelo Mestre, provavelmente escrito por Picander. A mesma meditação sobre o nosso estado nesse mundo, nossa ilusória saúde e sobre nosso verdadeiro médico, the wounded surgeon, nas palavras de Eliot; Herr Jesu, no verso da ária para baixo.
Até esse ponto, há apenas uma obra prima musical, entrelaçada com imagens poéticas capazes de chegar ao século XX. Então, surge a ária para soprano cujo sopro delicado e gentil, quase etéreo, afasta a sombra do luto trazida pelas peças anteriores. É uma prece dirigida ao doutor Jesus, pedindo graça, oferecendo louvor. Há mais, contudo.
É evidente o contraste entre a espantosa beleza musical da peça e seu texto. O poema diz que, quando o compositor estiver no coro dos anjos, sua música soará melhor. A melodia ouvida na cantata, portanto, é de menor qualidade, ligada à carne do homem. Ou estará o compositor anunciando, desde agora, como será a música do Paraíso? Ou compondo como se lá estivesse? Ou menosprezando de forma oblíqua uma de suas melhores criações? Espelhos diante de espelhos...
Assinar:
Postagens (Atom)