quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

99

A citação é um ofício sofisticado. Ela estabelece uma conexão e também reparte significados; oferece um recorte que ilumina uma frase, mas também exalta ou condena o texto de onde ela veio. O comentário é sempre menos importante que a Escritura e, ainda assim, como o seu sentido seria exposto? Na música, o exercício parece, à primeira vista, inviável: como citar uma obra sem cometer um plágio? Como seria possível comentar uma melodia com outra melodia?

Algumas condições precisam ser cumpridas. Uma das melodias precisa ser tão conhecida - como um coral religioso -, tão simples e tão venerável que a alusão seja imediata e sua reprodução sustentada pela mais pura das intenções. Todos sabem que música é aquela, porque está ali e qual o seu sentido cotidiano. A outra melodia precisa, por sua vez, ser o exato contrário: desconhecida, arrojada, cheia de truques, imaginosa. Escondendo, então, os estratagemas da harmonia, esta se lança sobre a outra como guirlanda e ornamento, amiga feia ou amiga bonita, são melodias, afinal.

Esse é o truque; a obra prima é conduzir a arte da citação. O coral da resignação e da confiança em Deus, composto por Samuel, ganha uma companhia alegre e divertida. As sugestões militares do comando e do poder vão ficando meio floridas e por isso deixa-se Deus comandar com mais confiança e tranquilidade.

Essa música é como uma boneca russa. Dentro de uma, tão sorridente, há outra e mais outra e assim por diante. Na ordem direta e inversa. Uma matriochka de 1724.

Was Gott tut, das ist wohlgetan,
Es bleibt gerecht sein Wille;
Wie er fängt meine Sachen an,
Will ich ihm halten stille.
Er ist mein Gott,
Der in der Not
Mich wohl weiß zu erhalten;
Drum lass ich ihn nur walten.


O que Deus faz, está bem feito,
Mantém-se justa sua vontade;
Quando ele governa meus assuntos,
A Ele hei de guardar em silêncio.
Ele é meu Deus,
Que na Tristeza
Sabe bem como me guardar;
Portanto a ele só deixo comandar.


quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

127

Uma arte programática floresce apenas no limite de suas intenções. Comprometida com uma mensagem, vai perdendo de vista a ambiguidade da vida humana. Chorar é somente chorar; o riso é sempre o riso. A linguagem escrita ainda tem à sua disposição as sete formas da imprecisão; a música não tem o recurso da ironia e corre o risco - ainda pior - do descabido. Nenhum compositor criaria melodias alegres para versos fúnebres.

Talvez não estejamos, contudo, diante de uma arte programática ou de um mero compromisso com o calendário religioso. Uma meditação, nesse ponto, causa estranheza. O crente que diz não temer a Morte, pois confia na promessa de Jesus, não deveria estar tão pesaroso. Essa melodia, claramente, não transmite uma confiança incontestável: há nela um mistério.

É porque estamos aqui ouvindo, quem sabe, não a prece confiante de quem crê, mas a mágoa de quem muito sofreu e intimamente se pergunta qual a razão desse padecer. A Fé não elimina o problema do Mal, mas o exalta. Bento XVI, naquela cidade polonesa, também indagou sobre o silêncio de Deus.

A música dessa ária certamente não pretende propagar a descrença e a desilusão. Confia em Jesus, mas está perplexa e ferida.


Herr Jesu Christ, wahr' Mensch und Gott,
Der du littst Marter, Angst und Spott,
Für mich am Kreuz auch endlich starbst
Und mir deins Vaters Huld erwarbst,
bitt durchs bittre Leiden dein:
Du wollst mir Sünder gnädig sein.


Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e homem,
Ó tu que sofreste o Martírio, o Escárnio, a Angústia
Por mim na Cruz finalmente morreste
E para mim o Indulto de teu Pai conquistaste,
Imploro por teu amargo Penar:
Concede a graça a mim Pecador.




sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

137

Perguntas retóricas têm uma longa história. A fúria do tribuno e o sarcasmo do tirano sempre usaram com grande eficácia a pergunta que não tem resposta, a pergunta que só admite em retorno a violência ou o silêncio. A música, contudo, não tem a possibilidade do gesto físico e não poderia responder se calando. Normalmente, a música oferece sua própria resposta. Afinal, o que fazer com um ponto de interrogação?

A célebre ária da águia termina, de fato, com uma pergunta: não percebes estas coisas? Assim o faz, contudo, porque a resposta veio antes, na música que comprova o comando do Senhor sobre as coisas, oferecendo ao ouvinte os horizontes celestes do vôo das águias. A frase do violino ergue-se como as poderosas asas do pássaro, em companhia do soprano, subindo a um céu azul de nuvens. A alegria do vôo está toda na melodia e ela é o poder de Deus. Não percebes estas coisas?

Outro artista teria se conformado com uma obra prima, uma jóia musical tão preciosa que guardaria para outras ocasiões e outros versos, mas ele julgou prudente terminar com o louvor de Deus e com uma lembrete para a alma: Não esqueças. Outra obra prima, cheia de auto-referência.

Diante deste verdadeiro coro místico, breve e cabal, cheio de ânsia pelo verdadeiro céu, só resta seguir ao pé da letra a recomendação de seus versos e concluir também a nota com um Amém. Amém.


Lobe den Herren, den mächtigen König der Ehren,
Meine geliebete Seele, das ist mein Begehren.
Kommet zu Hauf,
Psalter und Harfen, wacht auf!
Lasset die Musicam hören.

Louva o Senhor, o poderoso Rei da Glória,
Minha amada Alma, esse é meu Desejo.
Vinde em Bandos,
Acordai Saltério e Lira!
Deixai que a Música seja ouvida.



quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

135

Ele tem o segredo da música para a paixão. Há que ser dolente e cautelosa, pois o coração apaixonado está vulnerável e caminha como uma criança indefesa. A música da paixão é também solene: a ambiguidade da vida e das palavras já ficou pelo caminho e não há mais como rir, nem do quê. Pressentimentos terríveis são anunciados porque recuar será impossível, o sofrimento é inevitável e, na verdade, é buscado como o caminho para a redenção e a morte. A paixão, todos sabemos, termina na morte.

Essa música não precisa estar apenas no lamento de Pedro, que três vezes traiu a Jesus, no coral sobre o paciente cordeiro das dores, no acalanto para um homem morto ou no reconhecimento de que, verdadeiramente, sim, verdadeiramente, aquele era o Filho de Deus. Ela tem uma tonalidade que de pronto reconhecemos. A música da paixão pode espreitar os versos da confissão e do pedido de paz.

O mesmo coração que cercou suas criações com a matemática dos sons legou ao futuro a música da paixão, uma humana meditação sobre aquele, inocente, que morreu por todos. Generoso, deixou também que ela soasse sobre o sofrimento do pecador, aquele, como se fosse culpado, morrerá como todos.

Essas são, contudo, apenas palavras, que não são dignas nem de descalçar as sandálias da música da paixão. Um singelo milagre.



Ach Herr, mich armen Sünder
Straf nicht in deinem Zorn,
Dein' ernsten Grimm doch linder,
Sonst ist's mit mir verlorn.
Ach Herr, wollst mir vergeben
Mein Sünd und gnädig sein,
Dass ich mag ewig leben,
Entfliehn der Höllenpein.


Ah, Senhor, pobre de mim pecador,
Não me punas em tua Cólera,
Modera tua ira severa,
Ou estarei perdido.
Ah, Senhor, que sejam perdoados
Meus pecados e tende compaixão,
Para que possa para sempre viver,
E escapar das penas do Inferno.




quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

20

A existência de Deus não resolve os problemas do Infinito. Em verdade, a alma pode contemplar sem estranhamento e sem angústia as vastidões estreladas do espaço, pois o Deus que se fez Homem é também o criador das galáxias, aquele que fixou o curso do tempo imensurável. A glória da Criação - a infinitude do Universo e a finitude do Homem - é a mesma. O Deus que é bom, contudo, é o Deus que é justo e Ele julgará os homens do dia do Juízo e também eternos serão o castigo e salvação. Eternidade, eis o problema: ela pesa tanto sobre a ventura e como sobre a atroz punição.

A um artista imaginoso não escaparia o espanto de um tal contraste. O primeiro coro, portanto, eleva o espírito à contemplação dos espaços infinitos, lentamente, como alguém que ergue seus olhos ao céu estrelado e pouco a pouco compreende e se maravilha: Ó eternidade! A abertura francesa se estende em uma saudação ao grandioso Universo, que abala nosso coração e cala nossa língua. Um coro que diz, em seu verso final, que não pode mais falar.

A eternidade não é, contudo, uma brincadeira. Eternas são as chamas, eternos o castigo e o penar. O coração se angustia, pois dura tanto a eternidade. E o remorso vem, o medo, quando o pensamento segue para as ações e o pecado. Música feita para a desolação.

A única solução, todos sabem, a única esperança é o caminho do Bem. Um conselho cheio de doçura, destinado aos homens ainda perturbados pelo Infinito e pelo Inferno: liberta tua alma. Há compaixão nessa música.

O Ewigkeit, du Donnerwort,
O Schwert, das durch die Seele bohrt,
O Anfang sonder Ende!
O Ewigkeit, Zeit ohne Zeit,
Ich weiß vor großer Traurigkeit
Nicht, wo ich mich hinwende.
Mein ganz erschrocken Herz erbebt,
Dass mir die Zung am Gaumen klebt.


Ó Eternidade, tu Palavra do Trovão,
Ó Espada que transpassa a Alma,
Ó Início sem Fim!
Ó Eternidade, Tempo sem Tempo,
No grande Luto eu nada vejo
Para onde possa me voltar.
Meu Coração aterrorizado treme,
Minha língua cola no céu da boca.



sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

148

Creio que a história da filha de Jairo é apenas um referência. Não parece existir muita coisa sobre o desespero do chefe da Sinagoga aos pés de Jesus, as recriminações ouvidas, a multidão em torno de uma menina enferma, os lamentos e o barulho, ela apenas dorme e a maravilha e o espanto de todos que lá estavam. A turbulência das paixões humanas, a graça concedida e a celebração do milagre inefável não estão ali. Suspeito de outra coisa.

A deliciosa frase do trompete é uma prova evidente de que o artista se deixou levar por outra imagem, exposta no verso do Salmo. O que é essa melodia brilhante, complexa, desdobrada em sutilezas e doçura, senão o atavio sagrado, o manto do culto ao Senhor, com que foi vestida a sua obra? Sim, vamos celebrar o milagre - menina, levanta -, mas devidamente aparatados. O maestro naquele dia exibia sua melhor roupa, uma roupa feita de sons.

É desse modo que se produz uma complexa organização de símbolos, onde nada é direto e linear, onde vários planos se articulam sem dominância. Celebramos o milagre trazendo a glória ao nome de Deus, mas a música é tanbém o atavio do celebrante, na verdade, o duplo do pastor, trazendo seu próprio sermão musical.

A demonstração rigorosa vem na ária para tenor, cheia de duplo sentido. Pois os fiéis vêm ouvir o ensinamento cristão, o milagre de Jesus e também a música do Cantor. A casa celestial pode ser São Tomás, mas é também o céu, onde soa o coro dos Anjos, que um dia também tocará essa música terrena e assim por diante.

Bringet dem Herrn Ehre seines Namens, betet an den Herrn im heiligen Schmuck.


Honrai o nome do Senhor; orai a Ele com Atavios sagrados.



terça-feira, 12 de janeiro de 2010

143

A idéia de louvor pode assumir muitas formas. Há igrejas completamente talhadas em pedra a exaltar o engenho das criaturas de Deus e corais plenos de trompetes e vozes sobre vozes, querendo imitar o coro dos Anjos. Páginas e páginas impressas com orações e sermões - uma obsessão nem sempre frutífera. A regra é o excesso; o singelo, a exceção. O verso do salmo é apenas um ponto de partida e é muito difícil, após milênios, ser original.

Difícil, mas não impossível e logo no primeiro coro o trompete apresenta um longo sorriso. Menos que o testemunho de um esforço humano para honrar a Majestade divina, ouvimos o deleite da Alma exposto em música. Jesus Cristo, afinal, é o Príncipe da Paz e a vida pode ser tão cheia de infortúnios e temores. Por isso, nada de tristezas: o Senhor é Rei por toda a eternidade e Deus de Sião. Alívio, portanto, graça, floreios do trompete e da voz humana.

Há mesmo dança nesse louvor e o coro, logo em seguida, pede a Jesus em um verso quase infantil que Ele não esqueça de seu ofício. Por isso, querem os fiéis entoar, em Paz, a divina palavra.

Tornou-se um convenção, nos dias que seguem, quebrar convenções. Os modelos antigos devem ser abandonados; o novo, porque novo, é necessariamente bom. Em verdade, para ser mais que uma tolice, o novo precisa de fundamento real, mais que meras palavras. É assim que ouvimos aqui um sorriso dentro do louvor, o prazer do crente. É velho e novo, ao mesmo tempo.


Lobe den Herrn, meine Seele

Louva ao Senhor, minha Alma


quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

150

E subitamente são as montanhas do Líbano. Brilha o sol sobre a neve das alturas, estamos com os veneráveis cedros, as árvores que foram também tantas naus e o madeiro dos templos. E são os ventos que movem nossos cabelos e o verde de tantas folhas, ventos feitos por violoncelos, canção que é como uma prece ouvida à distância. E são as tempestades que ameaçam esses troncos, que os lançam sobre o chão e há nisso uma lição.

Devemos em nada prestar atenção, mesmo entre os ventos das montanhas do Líbano, mesmo entre os troncos dos cedros derrubados, senão no ensinamento que conduz nossos atos. Pois mais tarde, uma chaconna terrível, antecipando outras, informa que Jesus todos os dias luta a nosso lado, nos faz vitoriosos e que nossos dias de penar hão de ter um fim.

São músicas estranhas, não há dúvida, cheias de uma exaltação religiosa incomum, capazes de transmutar o mais convencional verso de um salmo em um teatro de emoções dramáticas, como estátuas que usassem máscaras terríveis em paisagens inóspitas.

Houve quem duvidasse da identidade de seu autor. Seria mais inteligente perceber outra face da mente que a concebeu. Sob a resignação luterana, o sentimento do sinistro; sob a poesia moral, tempestades de ventos e chaconas.


Nach dir, Herr, verlanget mich. Mein Gott, ich hoffe auf dich. Laß mich nicht zuschanden werden, dass sich meine Feinde nicht freuen über mich.


“A ti Senhor, levanto minha alma. Deus meu, em ti confio, não me deixes confundido, nem que os meus inimigos triunfem sobre mim.” (Salmo 25 1, 2)


quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

78

Morava em Suzhou, cidade dos lagos e dos canais, um grande sábio chinês. Gostando demais de uma vida de prazeres tranquilos, encontrou uma maneira singular de exibir seu gênio e sua imaginação, sem consumir muito de seu tempo. Alegando que apenas o Imperador poderia escrever uma literatura digna dos espíritos celestiais, tomava a liberdade de editar, modificar, corrigir, melhorar, ampliar e comentar livros produzidos pelos demais escritores de grande imaginação, mas pouca arte. Se tinha uma boa noite de bebedeira, poderia mesmo escrever longos prefácios explicando a nova obra e até mesmo inventava uma biografia nobre para um autor mais plebeu. Para que escrever novos livros, pensava enquanto comia suas melancias, se podemos melhorar os que já existem?

Sempre curioso, o grande sábio chinês andava por muitas cidades e chegou certa vez a um porto onde os bárbaros do oeste vinham vender suas mercadorias e exibir seus grandes narizes. Em um dos navios, viu o que imaginou ser alguma cerimônia com música e pessoas cantavam. Surpreendido e encantado, foi saber do que se tratava. Os bárbaros faziam um som jamais ouvido e suas vozes se misturavam de um modo que lembrava ao grande sábio os seus procedimentos com o texto alheio.

Sempre simpático, o grande sábio chinês quis saber se alguém no navio poderia lhe informar do que se tratava e um dos bárbaros do oeste, sempre insistindo em trazer suas religiões infernais para os domínios do Imperador, explicou-lhe do que se tratava. O grande sábio agradeceu e retornou desconfortável para os frescos canais de sua Suzhou, cidade das pontes de pedra.

Naquela noite, bebendo com amigos, percebeu que nada poderia fazer com respeito àquela música. Não atinava onde poderia ser melhorada, como ganharia mais perfeição. Depois de anos se imiscuindo genialmente nos rudimentos alheios, estava sem saber o que fazer. Intrigado, fez dois gracejos sobre os bárbaros do oeste e mandou um menino soltar mais fogos de artifício, pois gostava do cheiro de enxofre na noite.


Jesu, der du meine Seele
Hast durch deinen bittern Tod
Aus des Teufels finstern Höhle
Und der schweren Seelennot
Kräftiglich herausgerissen
Und mich solches lassen wissen
Durch dein angenehmes Wort,
Sei doch itzt, o Gott, mein Hort!


Jesus, tu que minha Alma
Com tua amarga Morte
Das trevas Infernais do Diabo
E da pesada tristeza da Alma
Poderosamente arrebataste
E que tal me deixaste saber
Por meio de tua gentil Palavra
Sê agora, Ó Deus, meu Refúgio!


terça-feira, 5 de janeiro de 2010

80

Quão variada é a idéia de dueto! Podem ser as mesmas vozes, um pouco diferentes, muito diferentes; o canto pode ser em uníssono, em cânone, em contraponto. Por vezes, o poema é o mesmo; por vezes diferente. São ouvidas perguntas, respostas, interjeições e seduções. Na verdade, não existe uma receita fixa e a melodia pode ser lenta, pode ser rápida e pode ser a capela. É uma mera idéia, sustentada pelo conceito de número dois, uma estrutura, uma conveção. A qualquer momento, um dueto pode ocorrer e nem percebemos.

Assim, tudo o que é nascido de Deus está destinado à vitória. Uma afirmação direta, fundamental, quase um fato para quem crê, e, realmente, com nossa própria força nada é feito e estaríamos perdidos. Luta - e a palavra das cordas é exatamente essa - por nós o verdadeiro homem que Deus mesmo escolheu. Nesse ponto, o dueto é belicoso, ergue o estandarte de sangue do Cristo, o juramento no Batismo, ameaça com a predestinação. O soprano não se contém e convoca o Deus hebreu dos Exércitos, "não há outro Deus" e decide que o campo de batalha será defendido a todo custo. Cordas, vozes, ritmos: o dueto é uma parceria de combate, irmãos em armas.

É uma música violenta, não há dúvida sobre esse ponto, e clamar que Deus é uma sólida fortaleza ganhou, nos últimos anos, uma ressonância sombria. Expulsa dos ritos religiosos há pelo menos dois séculos, ela ainda precisa ser explicada e protegida por uma leitura existencialista e individual.

Por esse exato motivo, aliás, é que o soprano, responsável pelos versos mais agressivos e ameaçadores, recebe a missão de cantar um outro pedido, uma visita à casa do coração. Mundo e Satã, fora!! É isso e só isso.

Ein feste Burg ist unser Gott,
Ein gute Wehr und Waffen;
Er hilft uns frei aus aller Not,
Die uns itzt hat betroffen.
Der alte böse Feind,
Mit Ernst er's jetzt meint,
Groß Macht und viel List
Sein grausam Rüstung ist,
Auf Erd ist nicht seins gleichen.


Uma sólida fortaleza é o nosso Deus,
Uma boa Defesa e Arma;
Ajuda a nos livrar de toda Tristeza,
Que justo agora nos aflige.
O velho e mau Inimigo,
Para valer ele intenta
Grande Força e muita Malícia
São sua cruel Armadura;
Na Terra, não há seu igual.



sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

14

Segue o estilo de um moteto antigo. É cantado em cânone, com uma melodia fugal sem ritornello. A música começa antecipando sua aridez, sem aquela passagem bonitinha que sempre retorna para lembrar do início. Inverte deliberadamente o sentimento do salmo de libertação: examina e percorre a possibilidade de desolação, não o eventual socorro de Deus.

Para um ateu, a existência de Deus seria apenas um engano, cuja correção o livraria de várias responsabilidades; para um crente, a ausência de Deus seria um deserto insurportável, onde a dor é inexplicável e o macabro não teria redenção. Exprimir tal sentimento, sem uma sinceridade íntima, é correr o risco do melodramático e do operístico. A exaltação exuberante do terror sempre esconde uma falta de crença fundamental. Manifestar de forma autência a secura existencial de um mundo sem Deus requer uma austeridade e estranheza que apenas polifonias arcaicas são capazes de produzir. No fundo, o desconforto com uma realidade desagradável e um desespero, no fundo, inútil.

E insuportável, também. Na ária seguinte, sopra uma brisa amigável, um chuva breve e graciosa que sublinha nossa humildade com extrema graça porque já iluminada pela certeza do amparo do Altíssimo. Como foi dito de seu autor, era geralmente sério em suas considerações, mas não lhe faltava a graça amena do filósofo. Mesmo nos desertos, chove.

Dizem alguns comentadores que a música foi composta tendo como referência à má sorte da Saxônia em uma guerra. Talvez soe aqui também um comentário político. O contraste entre a frivolidade galante da corte de Dresden, sempre confiante demais, e a severidade de Leipzig, vítima da guerra.

Wär Gott nicht mit uns diese Zeit,
So soll Israel sagen,
Wär Gott nicht mit uns diese Zeit,
Wir hätten müssen verzagen,
Die so ein armes Häuflein sind,
Veracht' von so viel Menschenkind,
Die an uns setzen alle.


Não fosse Deus conosco nessa Hora,
Assim diz Israel,
Não fosse Deus conosco nessa Hora,
Haveríamos de lamentar,
Pois tão fraca Hoste somos,
Desprezada por tantos filhos do Homem,
Contra nós todos dispostos.