quarta-feira, 6 de abril de 2011

67

Os últimos séculos foram pródigos em teorias sobre a natureza da música. Autores com maior prentensão de originalidade chegaram mesmo a sugerir que a música não teria uma substância específica, sendo pura como os triângulos ideais do geômetra grego. Por esse tempo já se sabia, contudo, que os triângulos são o produto de uma convenção, uma descrição arbitrária do universo. Podem ser produzidos em vários tipos de espaço, mas não se pode exigir de filósofos da música um conhecimento extenso das matemáticas.
O compositor dessa cantata, por sua vez, não se cansa de mapear, no sentido matemático do termo, suas melodias sobre o plano do real. Descobre correspondências, estabelece simetrias e revela formas imprevistas. No micro, o macro; no macro, o micro. Alguns compositores descrevem paisagens arcádicas; outros, supostas desventuras amorosas; mas aqui ele prefere estabelecer a dinâmica da memória. Na verdade, a persuasão da lembrança necessária, o memento terrível do passado, a definir os atos do presente.

A respiração do primeiro coro é exatamente o que promete: a insistência da lembrança. Guardar no seu mais íntimo domínio o fato fundamental sobre Jesus Cristo: que renasceu dentre os mortos, como escreveu Tímóteo. As vozes em contraponto trazem a mensagem da consciência e revelam algo sobre a operação da memória.

O resto, o confronto entre o tumulto do mundo e a voz de Jesus e o cântico sobre o Príncipe da Paz, são outras obras primas musicais, mas vêm depois. Muito depois da recordação.


Halt im Gedächtnis Jesum Christ, der auferstanden ist von den Toten.


“Lembra-te de que Jesus Cristo ressuscitou dos mortos”. (2 Timóteo: 2.7)



segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

119

Existe um sentimento específico de pertecer a uma cidade. Ruas, praças, jardins, prédios, rios e mares vão criando, em cada habitante, uma geografia própria feita de lembranças de felicidade, imagens do amanhecer e do ocaso, o perfume do vento nas árvores, a presença dos vivos e dos mortos. Sob um nome de cidade, muitas coisas tem tradução e mais ainda se, sobre estas ruas de pedra, casas, paisagens, vem repousar o mito. Por trás da Leipzig onde todos somos tão felizes está, invisível, a Jerusalém celestial, fortalecida nos ferrolhos de suas portas, como quer o Salmo. Duas cidades que são uma, quando cantam seus louvores ao Senhor.

O coro inicial, no formato de uma brilhante abertura francesa, celebra a aparição de Leipzig como Jerusalém ou, no mesmo instante, a instalação do Conselho Municipal. Em seguida, deixa que a polifonia, uma imagem dos seus cidadãos, repita as palavras do Salmo 147. Daí em diante, as árias enumeram as bençãos dos que vivem na cidade das tílias e agradecem pelo bom governo, sempre uma dádiva dos Céus, de acordo com a estrita leitura paulina. As duas árias, contudo, apenas preparam o grande Coro.

Brilhante polifonia vocal e instrumentos de festa, tambores, trompetes declaram que o Senhor grande Bem fez à cidade. Música à altura da ambição cósmica do compositor, igualando por meio do som a Jerusalém celestial e a Leipzig terrena. Música que não se esquece.

No fim, um coral tradicional, pois o conselho quer logo embora, a festa espera nas ruas e os habitantes da cidades das tílias querem gozar dos bens de Deus, enquanto imaginam estar em Jerusalém.



Leipzig, 1720.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

122

Não se entende muito bem porque os anjos devem ter asas. As direções do céu e da terra e o peso dos corpos existem apenas para os seres feitos de carne. Para Deus, não existe o alto ou o baixo, o norte e o sul; e seus anjos, como o Espírito, vão por onde querem. As asas são apenas para nossos olhos, para nosso entendimento preso à Terra: em verdade, os anjos de nada precisam para nos cercar em redemoinhos, por todos os lados, pois é certo que se movem.

Assim, sempre que há anjos, sobre a manjedoura, ou chamando pastores, ou presidindo benfazejos a abertura de um novo ano, a música do compositor não fala de asas: prefere deixar esses acordes para as águias. Sempre que há anjos, as melodias flutuam em torno de nós, cheias de certo mistério, em turbilhões que diríamos sombrios, quase noturnos. Uma presença que é como o vento, para o qual não há norte, nem sul, nem alto ou baixo, bate as janelas, arrepia a pele, empurra a branca vela dos barcos.

Como o ano novo sempre chega após a meia-noite, a cantata ergue, em seguida, ao céu escuro uma prece solene, pois a boa mensagem chegou: o menino nasceu e nada mais - os portões do Inferno, o Diabo - pode nos roubar da consolação. É noite, podemos estar em febre, podemos estar com medo, mas estamos protegidos.

É, portanto, tempo de cantar, tempo de alegria, como anuncia o coral. Os anjos estão aqui e também o pequeno Jesus. Feliz Ano novo!


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

25

Comentadores descrevem esse coro inicial como "pleno de arte". De fato, intrincado ele é: as palavras do Salmo 38 são elaboradas primeiro em uma fuga coral, cujas vozes são, em seguidas, trocadas; depois, nova fuga coral, sobre outro verso, e, por fim, uma combinação de ambos os temas. Enquanto isso, flautas e metais cantam o hino de Leo Hassler, "Ah Senhor, pobre de mim pecador". Solene, estranha, insólita - a música descreve com rigor a paradoxal situação da carne, vulnerável à doença e ao pecado.

A floresta de referências musicais e religiosas prossegue no recitativo do "mundo como hospital", uma metáfora tão viva na obra de Sir Thomas Browne como em um quarteto de T.S. Eliot. É surpreendente notar a semelhança textual entre a seção IV de East Coker e o poema musicado pelo Mestre, provavelmente escrito por Picander. A mesma meditação sobre o nosso estado nesse mundo, nossa ilusória saúde e sobre nosso verdadeiro médico, the wounded surgeon, nas palavras de Eliot; Herr Jesu, no verso da ária para baixo.

Até esse ponto, há apenas uma obra prima musical, entrelaçada com imagens poéticas capazes de chegar ao século XX. Então, surge a ária para soprano cujo sopro delicado e gentil, quase etéreo, afasta a sombra do luto trazida pelas peças anteriores. É uma prece dirigida ao doutor Jesus, pedindo graça, oferecendo louvor. Há mais, contudo.

É evidente o contraste entre a espantosa beleza musical da peça e seu texto. O poema diz que, quando o compositor estiver no coro dos anjos, sua música soará melhor. A melodia ouvida na cantata, portanto, é de menor qualidade, ligada à carne do homem. Ou estará o compositor anunciando, desde agora, como será a música do Paraíso? Ou compondo como se lá estivesse? Ou menosprezando de forma oblíqua uma de suas melhores criações? Espelhos diante de espelhos...


quinta-feira, 28 de outubro de 2010

57

A mesma ponderação clássica que recai sobre a história profana deve ser válida para a história sacra. Mudam suas figuras. Saem a coragem dos heróis no campo de batalha e o severo exemplo da moderação no poder; surgem a modéstia do mártir e a humildade do pastor. Esta música quer realçar a linhagem que começa em Abel, que cuidava de ovelhas, segue por Estevão e chega ao fiel, sentado em seu banco de igreja em Leipzig.

A ponderação musical começa pela Epístola, invocando a Perseguição, a Contestação, pois que é por esse meio que vem a Coroa da Vida. Muito pior, responde a alma em ária terrível, seria o desamor de Jesus, pior que a tristeza do inferno. Jesus celebra, entretanto, em música triunfante que o inimigo foi golpeado.

A Contestação, antes temida, se desvanece e o fiel proclama alegremente que quer terminar sua vida rapidamente. A voz do soprano, que também é a alma humana, inocente, angustiada, se oferece em sacrifício e diretamente pergunta : qual o meu prêmio?

A resposta do coral é a mensagem do pastor musical, que deixa o diálogo entre as vozes e assume novamente o sermão. O curso da história revela seu significado: não temas.



terça-feira, 20 de julho de 2010

134

A música, considerada como interpretação da Escritura, oferece aqui uma sublime lição. O Evangelho do dia, referido em seus primeiros compassos, é o capítulo 13 de Atos, versos 26 a 33. É sobre a pregação de Paulo em Antioquia, em uma sinagoga, no sábado, e é também sobre a confiança do Apóstolo em falar de Jesus aos judeus. Muitos o seguiram, muitos, porém, os perseguiram: Paulo e Barnabé foram lançados fora de seus termos. Pouco importa, pois o último verso do capítulo afirma: "E os discípulos estavam cheios de alegria".

Desde o primeiro coro, o tema da composição é a alegria de crer e cantar essa fé. Clamar aos quatro ventos, espalhar por toda parte, ajudando o engenho e a arte, e produzir, como na ária para tenor e alto, aquela metonímia tão apreciada pelo autor. Se os versos do poema prometem a oferenda dos lábios, a melodia e as vozes cumprem a promessa. Resta mesmo espaço para arriscar uma versão sonora das perseguições que sofre a Igreja.

Tão cheias de vida são essas composições que o autor não vê razão para um coral final. Redobra sua aposta em um coro a quatro vozes, com oboés e cordas, em que ribombam os Céus, alegra-se a Terra e a hoste dos crentes canta louvores ao Altíssimo.

O compositor, como se pode notar, não traz suas melodias para uma alegria mundana. Quer reviver os primeiros dias da Fé, quando Paulo e seus discípulos seguiam pelas estradas romanas falando de Jesus para gregos e judeus, sendo ouvidos ou escarnecidos, mas sempre com o mesmo ânimo.


Tenor
Ein Herz, das seinen Jesum lebend weiß,
Empfindet Jesu neue Güte
Und dichtet nur auf seines Heilands Preis.

Alt
Wie freuet sich ein gläubiges Gemüte.


Tenor
Um coração que seu Jesus sabe vivo,
Sente de Jesus um novo Bem
e faz versos somente para exaltar o Salvador

Alto
Como se alegra um Ânimo crente.




quinta-feira, 1 de julho de 2010

109

A contemplação constante do terror, o incessante turbilhão da loucura humana e o sofrimento de uma dor sem remédio empurram o coração para a Fé. Acreditar, contudo, nem sempre funciona. Em meio ao tormento, sem ver saída, não é fácil conquistar a serenidade da Fé. E, assim, disse o pai do menino: eu creio, mas ajuda minha incredulidade.

Deixem que os santos se gloriem em sua calma. Para todo o resto de nós, persiste a convivência com a dúvida e a angústia. A Fé é um dom, uma dádiva. Não crê quem apenas quer crer: há um limiar a ser transposto. Um limiar em nosso desespero, possessão, oração, jejum e penitência.

Essa composição em tonalidade ocre não pretende resolver esse dilema. Sua chave está na ária para alto: a Fé segue longe de nosso alcance, mas o Salvador nos conhece, conhece os seus e vem ajudar. No limiar, estaremos acompanhados. Soam doces os oboés.

Sobre o sermão final, o coral, ainda pairam demônios, infortúnios e perigos. Em ré menor, ele adverte a construir sobre essa rocha. Deus ajuda, mas a Fé precisa entrar em seu coração. Ela não estava lá.

Ich glaube, lieber Herr, hilf meinem Unglauben!

“Eu creio, ó Senhor, mas ajuda-me na incredulidade!”