quarta-feira, 6 de abril de 2011

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Os últimos séculos foram pródigos em teorias sobre a natureza da música. Autores com maior prentensão de originalidade chegaram mesmo a sugerir que a música não teria uma substância específica, sendo pura como os triângulos ideais do geômetra grego. Por esse tempo já se sabia, contudo, que os triângulos são o produto de uma convenção, uma descrição arbitrária do universo. Podem ser produzidos em vários tipos de espaço, mas não se pode exigir de filósofos da música um conhecimento extenso das matemáticas.
O compositor dessa cantata, por sua vez, não se cansa de mapear, no sentido matemático do termo, suas melodias sobre o plano do real. Descobre correspondências, estabelece simetrias e revela formas imprevistas. No micro, o macro; no macro, o micro. Alguns compositores descrevem paisagens arcádicas; outros, supostas desventuras amorosas; mas aqui ele prefere estabelecer a dinâmica da memória. Na verdade, a persuasão da lembrança necessária, o memento terrível do passado, a definir os atos do presente.

A respiração do primeiro coro é exatamente o que promete: a insistência da lembrança. Guardar no seu mais íntimo domínio o fato fundamental sobre Jesus Cristo: que renasceu dentre os mortos, como escreveu Tímóteo. As vozes em contraponto trazem a mensagem da consciência e revelam algo sobre a operação da memória.

O resto, o confronto entre o tumulto do mundo e a voz de Jesus e o cântico sobre o Príncipe da Paz, são outras obras primas musicais, mas vêm depois. Muito depois da recordação.


Halt im Gedächtnis Jesum Christ, der auferstanden ist von den Toten.


“Lembra-te de que Jesus Cristo ressuscitou dos mortos”. (2 Timóteo: 2.7)



segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

119

Existe um sentimento específico de pertecer a uma cidade. Ruas, praças, jardins, prédios, rios e mares vão criando, em cada habitante, uma geografia própria feita de lembranças de felicidade, imagens do amanhecer e do ocaso, o perfume do vento nas árvores, a presença dos vivos e dos mortos. Sob um nome de cidade, muitas coisas tem tradução e mais ainda se, sobre estas ruas de pedra, casas, paisagens, vem repousar o mito. Por trás da Leipzig onde todos somos tão felizes está, invisível, a Jerusalém celestial, fortalecida nos ferrolhos de suas portas, como quer o Salmo. Duas cidades que são uma, quando cantam seus louvores ao Senhor.

O coro inicial, no formato de uma brilhante abertura francesa, celebra a aparição de Leipzig como Jerusalém ou, no mesmo instante, a instalação do Conselho Municipal. Em seguida, deixa que a polifonia, uma imagem dos seus cidadãos, repita as palavras do Salmo 147. Daí em diante, as árias enumeram as bençãos dos que vivem na cidade das tílias e agradecem pelo bom governo, sempre uma dádiva dos Céus, de acordo com a estrita leitura paulina. As duas árias, contudo, apenas preparam o grande Coro.

Brilhante polifonia vocal e instrumentos de festa, tambores, trompetes declaram que o Senhor grande Bem fez à cidade. Música à altura da ambição cósmica do compositor, igualando por meio do som a Jerusalém celestial e a Leipzig terrena. Música que não se esquece.

No fim, um coral tradicional, pois o conselho quer logo embora, a festa espera nas ruas e os habitantes da cidades das tílias querem gozar dos bens de Deus, enquanto imaginam estar em Jerusalém.



Leipzig, 1720.