segunda-feira, 15 de março de 2010

169

Longe dos desertos de areia o apelo do ascetismo se enfraquece. A verdade é que a vida é cheia de pequenos prazeres e com a passagem dos anos o coração vai se apegando à doçura da música, das manhãs gastas em preguiça e às pequenas coleções que todos fazemos, mesmo sabendo que um dia serão dispersas. Por que não amar as vozes das crianças, o perfume do travesseiro ou a luz sobre a água do mar? E assim, secretamente, mesmo sem avareza, vamos acumulando tesouros na Terra, desses que os ladrões roubam e os ratos róem.

Para devolver os corações apenas a Deus é preciso transformar em antídoto o que é veneno. Desvelar a presença divina no que pode ser belo nesse vale de lágrimas. Produzir uma exaltação sensual que anule a si mesma e é por isso que a mais brilhante das árias pede a morte da arrogância, do amor às riquezas, do prazer do olhar e os desejos da carne. Uma promessa de negação desse mundo que usa precisamente suas armas mais esplendorosas e seus encantos mais emocionantes.

A música é brilhante, retirada de um concerto dedicado a finos salões e a um educado público, mas não estou certo de que sua intenção realmente funcione. Entre a invocação da morte das paixões pelas coisas desse mundo e a beleza de uma melodia inesquecível, a alma hesita, quer ouvir uma vez mais e, portanto, peca. Os desejos da carne não estão verdadeiramente mortos.

Ou talvez seja apenas mais uma versão daquela famosa oração. Um dos santos, quando jovem, pedia continência e recato para sua vida de loucuras e amores; pedia e ponderava: agora não, todavia. É como a ária para soprano: morrei em mim, sim, mas não agora. Fiquemos um pouco mais em nosso jardim.


Gott soll allein mein Herze haben.
Zwar merk ich an der Welt
Die ihren Kot unshätzbar hält,
Weil sie so freudlich mit mir tut,
Sie wollte gern allein
Das Liebste meiner Seele sein.
Doch nein; Gott soll allei mein Herze haben:
Ich find in ihm das höchste Gut.
Wir sehen zwar
Auf Erden hier und dar
Ein Bächlein der Zufriedenheit,
Das von des Höchsten Güte quillet;
Gott aber ist der Quell, mit Strömen angefüllet,
Da Schöpf ich, was mich allezeit
Kann sattsan und wahrhaftig laben:
Gott soll allei mein Herze haben.

Que somente Deus tenha meu Coração!
Bem vejo que o Mundo,
que seu Excremento entende precioso,
amistoso quer fazer-se a mim,
quer e insiste assim
ser caro a meu Coração.
Mas não! Que somente Deus tenha meu Coração!
Nele encontro meu supremo Bem.
Bem podemos ver
Na Terra, aqui e ali,
correrem Rios de Paz
nascidos da Bondade do Altíssimo,
porém Deus é sua Fonte, de Corrente caudalosa,
dela retiro o que para sempre,
pode deveras e à saciedade me consolar
Que somente Deus tenha meu coração!




4 comentários:

  1. Que maravilha confrade. Que realmente fiquemos em nossos secretos jardins...

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  2. Pois é: a ária dele, de tão bela, não convence...

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  3. Que firmeza e fé.
    "Que somente Deus tenha meu coração!"
    Nessas horas, percebemos que tudo não passa de vaidade, até mesmo este lindo jardim.

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