sábado, 10 de abril de 2010

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O solista é, ele mesmo, uma metáfora*. Ainda assumindo um papel destacado da orquestra e desenvolvendo seu próprio discurso musical, o instrumento não tem como fugir de sua intenção original ou de sua tradição. A biografia tende à história; o filho reflete a família. Quando o autor chama o órgão à frente da orquestra, deixando o contínuo para seus sucedâneos, está convocando a poderosa e solitária voz de Deus para o tumulto da orquestra.

Sem reproduzir a melodia coral, que é o fundamento da fé e o domínio do instrumento, o órgão transmuta a peça galante em intenção religiosa. A maestria do equilíbrio entre o ritornello e a orquestra se desdobra em outro plano: a compreensão de que o triunfo virá por meio de dificuldades e lutas, respostas, ataques, contra-ataques, resoluções, disposição para o confronto, tribulação. Em seguida, o que era pausa e prazer se revela como ascensão ao reino estrelado do Céu.

Quanto ao resto, apenas outras versões do Espírito, que sopra por onde quer. Flautas para o lamento, flautas para a semeadura das lágrimas, os oboés para o canto da alegria futura, quando teremos a luz das estrelas e o brilho do Sol. O coral consagra o curso da obra que da tribulação caminha à certeza do Reno dos Céus.

Quem guarda, contudo, essa música na memória, guarda o truque e a mensagem. A severa voz musical de Deus arrebatando a música galante - o que era brilho da mente criadora era também a trabalho do espírito. O que era música, era também soteriologia. Como a matéria e a energia, são a mesma coisa, se prestamos atenção.


Wir müssen durch viel Trübsal in das Reich Gottes eingehen.

“Pois que muitas tribulações nos importa entrar no Reino dos Céus” (Atos 14, 22).








* A expressão solista metafórico foi criada por Laurent Dreuyfuss para descrever exatamente o uso do órgão como solista em várias cantatas do autor.

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