domingo, 27 de dezembro de 2009

106

Há uma beleza que faz falar; outra, faz calar. A primeira pode ser contemplada de uma distância emocional segura e vai se transformando em ícone, inalcançável porque não queremos, de fato, alcançá-la. A segunda torna-se mais próxima a cada visitação e a familiaridade não a prejudica. Transpõe a barreira que construímos para nos proteger do ruído do mundo, nos invade e estabelece seu território. A indústria cultural agrava a síndrome. Olhamos a estante e sabemos que ali há uma inquietação que já nos tomou. Não podemos mais fingir que não existe, não podemos mais conter sua presença por meio de um rito qualquer. Está perto demais.

As comemorações, os centenários e as muitas páginas não lhe dizem respeito. Sua existência no mundo externo é quase irrelevante. Ela se apossou de nossas memórias mais íntimas, das imagens sobre quais jamais falamos, ela nos faz perguntas que não sabemos responder. É um simbionte que, se fôssemos sábios, deveríamos temer.

Levei muito tempo para entender a persuasão da música sobre o tempo de Deus. Morrer é inevitável, decerto, e cada um, no fundo, aceita o rito funeral. O momento, contudo, sempre poderia ser outro; um ano a mais, um mês a mais. Difícil aceitar que seja aquele momento, tão irrelevante como todos os outros. A música vem, assim, para trazer a paz e a certeza de que o momento é sempre o melhor. Ainda me perturba, porém, a firmeza de Jesus, prometendo ao ladrão o Paraíso para aquele mesmo dia. Perturba-me a música que sustenta a palavra Paraíso.

A obra prima - a possibilidade de comunicação imediata com os homens do passado e os homens do futuro - não está nos museus, nas enciclopédias, na versão desta ou daquela orquestra. Está na mensagem escrita no verso da folha de papel posta sobre mesa e que não sabemos quando vamos virar.

Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit.
In ihm Leben, weben und sind wir,
solange er will,
In ihm sterben wir zur rechten Zeit,
wenn er will.

O tempo de Deus é o melhor dos tempos.
nele vivemos, nos movemos e existimos
tanto quanto Lhe apraz.
Nele morremos na hora determinada,
segundo Sua Vontade.


Nenhum comentário:

Postar um comentário