sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

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O mérito desse registro é do maestro John Eliot Gardiner. Não adianta pesquisar em diários de época, em cartas pessoais, nas notícias de jornais locais ou nacionais, em cadernos de recordações ou em documentos oficiais. Semana após semana, a programação musical dos cultos da igreja de São Tomás trazia maravilhas seguidas de maravilhas sem que tenha restado um só testemunho contemporâneo. Sabemos hoje que essas apresentações não recebiam, ao seu final, os protocolares aplausos que hoje enchem as salas de concertos. Não sabemos também quão tediosos eram os sermões pronunciados antes e depois da música litúrgica. De todo modo, não há um mísero comentário contemporâneo: hoje, a música foi extraordinária em São Tomás. Ela foi recebida em silêncio pelos fiéis e o silêncio se prolongou na memória escrita. Gardiner, comentando esse fato espantoso, lembra o texto do Evangelho sobre porcos e pérolas.

Compreender uma obra prima, contudo, pode não ser tão óbvio. Os tempos modernos, com sua obsessão publicitária com o gênio artístico e com o sucesso financeiro, têm uma visão simplória da grande arte: existe apenas o best seller, o disco de platina, o prêmio Nobel e outras etiquetas similares. Entretanto, o coral Jesus bleibet meine Freude, o pop, o casamenteiro, o toque de telefone celular Jesus Alegria dos Homens foi ouvido a primeira vez sem deixar um registro sequer. Ganhou sua popularidade atual apenas com a versão para piano de Myra Hess, publicada originalmente em 1926. No momento em que o rádio emergia como meio de comunicação a versão para piano pode ter aberto o caminho para uma estranha popularidade.

Essa popularidade, na verdade, ainda hoje obscurece a composição original, onde se pode encontrar canções maravilhosas em engenho, fé e sensibilidade, poesias de alto nível literário, um encantador episódio do Evangelho e pelo menos outra excepcional obra prima, o coro Coração e Boca, Atos e Vida. Este último, por sinal, mais antigo, composto em Weimar. As duas versões mostram, por sinal, que o compositor gostava mais do coro inicial.

Essa, na verdade, pode ser a marca da obra prima. O autor apenas suspeita do valor de sua criação, os primeiros ouvintes nem a recordam direito, os séculos passam, seu conteúdo complexo é visto de outra maneira, seu estudo constante revela mais e mais ângulos. Surge um culto privado da obra prima. No fundo, ela continua tal como no seu primeiro dia; é tão grande que não podemos vê-la inteira. Sentimos sua presença e compreendemos em parte.


Herz und Mund und Tat und Leben
Muss von Christo Zeugnis geben
Ohne Furcht und Heuchelei,
Dass er Gott und Heiland sei




 
Myra Hess (1895-1965)

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