sábado, 12 de dezembro de 2009

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O passado é constantemente questionado a demonstrar sua atualidade. Sem cumprir essa rigorosa tarefa, obras de arte, livros, reflexões filosóficas, lideranças políticas ou religiosas correm o risco do mais analítico desprezo. Parecem salvas apenas quando antecipam o tempo presente e jamais tiveram tal ambição.  Um observador imparcial notaria que a mera existência do passado deveria recomendar, no mínimo, um crença comedida nas mitologias do presente. Afinal, pouco resta do passado que possa sobreviver ao critério da atualidade e o mesmo ocorrerá com o tempo presente. Seria esperar muito. A atualidade, achando-se o início do Grande Futuro, ambiciona julgar impiedosamente o passado.

Vez por outra esse otimismo adolescente sofre suas rachaduras. A sombra de epidemias mortais do passado lembra os limites da ciência médica moderna; o terrorismo religioso confirma a tênue pátina do iluminismo. Foi divertido também ler, publicado no insuspeito e contemporâneo Guardian, um antigo poema alemão que recomendava ao fiel fazer as suas contas. Um verso terrível que fendia as rochas, gelava o sangue e bem serviria de epígrafe para a crise financeira cujos efeitos ainda hoje não se esgotaram sobre a economia britânica. Apesar das virtudes inegáveis do desenvolvimento sustentável, talvez fosse melhor recomendar a Deus os bens, o corpo e a vida.

Esse encontro promovido pelo autor do artigo soava ainda mais agridoce por conta da ária para tenor, cujos versos parecem ter sido escritos especialmente para ofender a sensibilidade moderna no que se refere ao formato de uma obra musical, mesmo com conteúdo religioso. Não se imagina uma canção moderna falando em capital e juros ou ainda que Deus faz nossa péssima contabilidade gravando-a em aço e diamante. Nos dias de hoje, a ruína financeira pode nos atingir, podemos ser vítima da cobiça e da avareza, mas devemos falar de amor.

O certo é que depois de tanta tensão e ameaça, música mais que maravilhosa exalta precisamente o que seria a real solução: Senhor, quebra as cadeias de Mamon! Mãos, espalhai o Bem! Afinal, o mundo, hoje ou amanhã, vai acabar, a finitude é nossa lei. Não me lembro se o artigo do Guardian chegou a esse ponto.

Tue Rechnung! Donnerwort,
Das die Felsen selbst zerspaltet,
Wort, wovon mein Blut erkaltet!
Tue Rechnung! Seele, fort!
Ach, du musst Gott wiedergeben
Seine Güter, Leib und Leben.
Tue Rechnung! Donnerwort!



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