sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

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Trata-se de um caso de metonímia. Havia comprado um volume da versão completa do Harnouncourt, aquela da capa marrom, e fui ajeitando o CD no player portátil pela rua até chegar ao ponto de ônibus em frente ao Union Bulding. Nem ia pegar o ônibus, apenas sentar um pouco, era um sábado e o céu de Ann Arbor me parecia uma maravilha feita de azul. Naquele verão, pensei que jamais veria algo tão nitidamente azul e nem sabia que estava certo. Ali sentado ouvi pela primeira vez a frase do trompete informando que o céu celebra a glória de Deus. Intoxicante, como a descreveu Schweitzer, ela sobrepunha a glória de Deus ao céu espantosamente azul do estado de Michigan em julho.

Muitos encontros decorrem, por vezes, de um só. A visão dos céus azuis, sem uma nuvem sequer, a partir daquele dia, sempre me lembra da frase do trompete e esta, quando ouvida, por sua vez, dos céus azuis. Céus azuis e trompetes me levaram de novo ao livro dos Salmos e ao convívio com as palavras da Germânia. Decifrados os termos bárbaros, foi necessário entender porque o tenor pedia o ódio de uma raça inimiga e porque se invocava o povo à ouvir a voz de Deus. Muita coisa era explicada pelo verso dizendo ao cristão que vivesse em seus atos.

Não era moda, naqueles dias, falar em portais para outras dimensões ou em mundos virtuais, mas é certo que sentado em frente ao ponto de ônibus, sob o sol forte de Ann Arbor, entrei em um país desconhecido, composto de literaturas quase mortas, uma língua abstrusa, uma mitologia que jamais me encantara. Fui apresentado ao que era radicalmente diferente, transfigurado pela música.

Ainda hoje, ainda ontem, para dizer a verdade, não me canso de espantar com o fato de que os versos dizendo que não há língua ou narração onde não se ouça a voz de Deus são distribuídos pelas quatro vozes do coro. De fato, cada uma das vozes diz que não há voz onde não se ouve a voz de Deus. E perceber o truque não lhe retira uma fração sequer do espanto.


Die Himmel erzählen die Ehre Gottes,
und die Feste verkündiget seiner Hände Werk.
Es ist keine Sprache noch Rede,
da man nicht ihre Stimme höre.





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